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Guilherme Boulos

A renovação da esquerda

Devemos buscar respostas às questões da sociedade

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Guilherme Boulos (PSOL), ex-candidato à Presidência da República em 2018 - Daniel Ramalho - 04.out.18/AFP

O caso dos deputados do PDT e do PSB que votaram pela reforma da Previdência abriu debate público, ainda que enviesado, sobre renovação da esquerda. Parte da imprensa apressou-se em anunciar o conflito entre uma esquerda “velha e rançosa” e um sopro de novidade, representado por Tabata Amaral (PDT-SP) e grupos como Acredito e RenovaBR. Ver novas gerações entrando na política é muito bom e tem potencial de oxigenar o debate. Mas nem tudo que é novo é uma renovação.

A reforma da Previdência é emblemática para entender onde as águas se dividem. Ainda que o texto final tenha sido mais civilizado que o de Paulo Guedes, manteve duras perdas aos trabalhadores: 40 anos de contribuição para aposentadoria integral, redução da pensão por morte e da aposentadoria por invalidez e regra mais dura para o cálculo dos benefícios e o abono salarial.

Não por acaso, 82% da economia prevista está justamente no abono e no regime geral, que tem a média dos benefícios pouco maior que R$ 1.400. Enquanto isso, o regime das Forças Armadas, com benefícios médios de R$ 13.700, permaneceu intacto.

Defender essa reforma em nome da austeridade fiscal, embora cruel, é compreensível na lógica dos liberais. Agora defendê-la em nome do combate às desigualdades e ainda associar isso a uma “esquerda renovada” beira o escárnio. Embora é fato que o papel de noivo traído assumido por dirigentes partidários não convence, já que as posições do Acredito e de seus financiadores sempre foram claras.

Quem quer uma esquerda que aceite retirada de direitos em nome de “ajuste fiscal”, privatização de empresas públicas em nome da “eficiência do mercado” e que abra mão de defender a regulação do sistema financeiro em nome do “ambiente de negócios”; quem quer uma esquerda que não defenda a liberdade de Lula, mesmo após desmascarada a fraude, em nome do “respeito às instituições”, quer uma esquerda inofensiva e não renovada. Uma esquerda sem dentes.

Na conjuntura mundial de avanço da extrema-direita, é justamente onde afirma seus princípios, em vez de dilui-los no liberalismo, que a esquerda tem sido capaz de inspirar a juventude e construir alternativas: do enfrentamento a Wall Street de Sanders e AOC ao plano de renacionalização de Jeremy Corbin, passando pelo Bloco de Esquerda português, que criou as condições para uma coalizão antiausteridade.

Não há dúvida de que a esquerda brasileira precisa de renovação. Sofremos uma dura derrota e é preciso aprender com ela. Os erros foram muitos, a começar pelo vício da adaptação: a esquerda acomodou-se nas instituições e perdeu as periferias, deixando espaço aberto para o avanço neopentecostal, hoje hegemonizado pelo bolsonarismo. Temos o desafio de trazer para o centro da agenda reformas estruturais não realizadas, como a política —que pode quebrar o “modus operandi” da corrupção no Estado brasileiro—, a tributária e a bancária.

Além disso, um projeto de futuro passa por buscar respostas às grandes questões que a sociedade nos coloca hoje. Como pensar as relações de trabalho num mundo com inteligência artificial e com o advento da indústria 4.0? Como pensar um novo modelo de desenvolvimento, que não nos limite à condição primário-extrativista e em que a economia esteja a serviço da sociedade e do meio ambiente? Como pensar uma esquerda que, no governo, promova valores humanos e solidários além do acesso a bens de consumo?

Para voltar a ser alternativa, a esquerda não pode guiar-se por um ufanismo acrítico, mas tampouco por aqueles que a querem domesticada. Ainda mais diante de um governo selvagem e devastador. 

A realidade pede uma esquerda capaz de fazer oposição dura a Jair Bolsonaro, que volte a pisar no barro e que seja inspiração para aqueles que acreditam num outro modelo de sociedade. Para isso é preciso, nos tempos difíceis, ter a coragem de nadar contra a corrente. Atalhos podem parecer promissores, mas não nos levam longe.

Guilherme Boulos

Professor e coordenador nacional do MTST, é formado em filosofia (FFLCH-USP), especializado em psicologia clínica (PUC-SP) e mestre em psiquiatria (USP); foi candidato à Prefeitura de São Paulo (2020) e à Presidência da República (2018) pelo PSOL

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