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Pedro Villas Boas Castelo Branco e Luiz Alexandre Souza da Costa

Democracias morrem, e a morte começa com pequenas perdas

Ocorrido na Bienal do Livro é marco na espiral autoritária

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Público faz fila e troca livros com temática LGBT distribuídos pelo youtuber Felipe Neto na Bienal do Livro do Rio
Público faz fila e troca livros com temática LGBT: obras foram distribuídas pelo youtuber Felipe Neto na Bienal do Livro do Rio - Bruno Molinero/Folhapress
Pedro Villas Boas Castelo Branco Luiz Alexandre Souza da Costa

A paisagem marcial, onde tropas e tanques adentram em suas próprias cidades em busca do arrebatamento do governo, deixou de fazer parte, nas últimas décadas, do cenário da maioria dos países que adotaram a democracia.

Porém, a ausência desse lamentável espetáculo histórico não significa que os regimes democráticos estejam seguros. Atualmente, a categoria de personagens envolvidos na "causa mortis" da democracia não é, via de regra, de generais e soldados, mas de indivíduos eleitos pelo voto popular.

Para Steven Levitsky, professor de Harvard e um dos autores do best-seller “Como as democracias morrem”, que esteve presente na Bienal do Livro deste ano, os regimes democráticos vêm sendo solapados por políticos que chegam ao poder democraticamente. E as autocracias eleitas não são ruidosas. Os atos tomados pelo aspirante a ditador são consumados pouco a pouco e, via de regra, sob o pretexto da necessidade de derrotar inimigos aleatoriamente escolhidos, como comunistas, terroristas, corruptos ou minorias.

O governo passa a operar silenciosamente na erosão democrática, com o aparelhamento estatal, a nomeação de amigos e parentes em cargos estratégicos, o estrangulamento econômico de instituições mediante chantagens de corte orçamentário, a exoneração de técnicos, a ameaça à imprensa e o discurso de descrédito aos outros Poderes da República.

O “combate à corrupção” é comumente utilizado como ferramenta e é direcionado ao inimigo político, onde a seletividade, a parcialidade e a arbitrariedade não deixam dúvidas quanto ao verdadeiro objetivo de atingir fins pessoais.

Ao se tratar o adversário como inimigo, desprezar a Constituição, as instituições, recusar o resultado das urnas, atacar a imprensa e demonizar a política, o regime democrático é criminalizado e enfraquecido, e a linha que o separa da ditadura tende a ser ultrapassada.

Após a implosão da democracia, o autocrata moderno mantém, ao menos em aparência, a Constituição, o Parlamento, o Judiciário e as demais instituições. Até a imprensa —amiga ou subjugada— permanece existindo. Essa roupagem jurídica, preservada de modo superficial, serve para legitimar as medidas autoritárias que foram tomadas e dar a impressão da normalidade democrática.

O ocorrido durante dois dias na Bienal do Livro do Rio de Janeiro —um deles quando acontecia um debate com o próprio Levitsky —, onde o prefeito Marcelo Crivella (PRB), com a anuência do Poder Judiciário fluminense, censurou uma revista em quadrinhos em que havia em uma única página um beijo gay, é importante marco nessa espiral de acontecimentos autoritários que vêm tomando o país.

A atitude do alcaide foi um ataque sem pudores contra a liberdade de expressão e de manifestação cultural, ambas garantidas na Constituição Federal, além de uma discriminação brutal contra homossexuais, e tudo sob a pueril justificativa de “proteção às crianças”. Um beijo foi eleito à qualidade de inimigo público a ser combatido —e foi direcionada a força do Estado, através de uma tropa de choque, para coibi-lo.

É preciso muita atenção neste momento, pois os movimentos antidemocráticos tendem, quando iniciados, a aumentar. Começam de forma sutil, com alguns poucos indivíduos, mas com o tempo crescem em quantidade e intensidade, aderindo a eles pessoas insatisfeitas e políticos oportunistas.

A partir daí, discursos incômodos passam a ser brados de ódio; ameaças se tornam condutas; e os gritos do autoritarismo acabam por silenciar as vozes democráticas e das minorias vulneráveis. Quando você passa a ter medo de realizar determinado ato que não é criminoso ou ilegal, é porque a democracia do seu país já está sob risco.

Aqueles que não quiserem assistir à queda do regime democrático e à restrição de direitos por autocratas, mesmo que eleitos, devem agir de forma imediata, manifestando sua indignação e firmando os votos democráticos da sociedade. Pois se assentirem e derem de ombros com a morte de uma pequena liberdade, amanhã estarão velando aos pés de sua falecida democracia.

Pedro Villas Boas Castelo Branco

Doutor em ciência política e professor do Iesp-Uerj

Luiz Alexandre Souza da Costa

Doutorando em ciência política pelo Iesp-Uerj e professor da Escola de Oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro

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