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Bianca Tavolari

Função social da propriedade: Constituição a gosto do freguês?

PEC permite escolher qual conjunto de princípios fundamentais será violado

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Em maio, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e outros 27 parlamentares apresentaram uma PEC alterando os critérios de cumprimento da função social da propriedade urbana e rural. Entre as justificativas está a necessidade de conferir uma definição “mais precisa” ao conceito. Para os autores da proposta, com signatários do Cidadania, DEM, MDB, PDT, Podemos, PP, PSB, PSD, PSDB e PSL, a função social é uma limitação ao direito de propriedade, entendido como um “bem sagrado” que “deve ser protegido de injustiças”.

No início de julho, a senadora Juíza Selma (PSL-MT) deu parecer favorável à PEC no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. A senadora é uma das signatárias da proposta, assim como Simone Tebet (MDB-MS), presidente da comissão. Para a relatora, “não há dúvida de que os constituintes de 1987-88, no que se refere à propriedade urbana e rural, optaram por um ideário de coloração socializante, ampliadora do poder de intervenção estatal, ao incluir, curiosamente, (...) a obrigatoriedade de a propriedade atender a sua função social”.

O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), em Brasília - Adriano Machado - 16.jul.19/Reuters

O texto da PEC, porém, mostra que essas justificativas giram em falso. Estamos diante de uma proposta que atenta não apenas contra a função social da propriedade, mas contra a própria Constituição. Trata-se do uso de um instrumento legal com a finalidade de solapar pilares do Estado democrático de Direito, corroendo a democracia por dentro.

Na nova redação do artigo 186, a propriedade rural passa a cumprir sua função social se atender a ao menos uma das exigências que hoje integram o texto constitucional: aproveitamento racional e adequado, preservação do meio ambiente, observância da regulação trabalhista, exploração do bem atrelada ao bem-estar. Se a terra tem aproveitamento racional, o proprietário não precisa se preocupar com questões ambientais. Se a utilização for adequada, está autorizado a se valer de trabalho escravo ou comprometer bem-estar.

O mesmo acontece com a propriedade urbana. O atual artigo 182 vincula a função social da propriedade urbana às exigências do Plano Diretor. A PEC altera o critério, novamente deixando a escolha livre ao proprietário. Se um imóvel atender os parâmetros construtivos, o proprietário está desobrigado a preservar o meio ambiente e o patrimônio histórico. Se, por outro lado, houver preservação ambiental, a propriedade não precisa ter aproveitamento compatível com a sua finalidade, o que pode significar, por exemplo, que um prédio poderá permanecer vazio por prazo indeterminado.

​As afirmações sobre o caráter “sagrado” da propriedade ou a acusação de “coloração socializante” não passam de cortinas de fumaça. O mais importante é o que esta PEC significa na prática. Ela cria uma "constituição-menu". Permite que o proprietário escolha, tal como num cardápio, qual conjunto de princípios fundamentais quer violar.

Prefere desrespeitar as relações de trabalho? Ou é melhor não seguir as regras de proteção ambiental? Ou que tal violar as regras urbanísticas em bloco? Fica a gosto do freguês. Cumprindo ao menos um dos critérios da lista, os senadores garantem que não haverá desapropriação. Nos improváveis casos em que o proprietário, esforçando-se bastante, desrespeitar todos os critérios, os senadores dão mais uma ajuda: de acordo com a nova redação, o Poder Executivo passa a precisar de autorização prévia do Legislativo ou de decisão judicial —ou seja, deixa de ter competência para agir sozinho.

Não é um debate sobre a definição “mais precisa” ou “verdadeira” de função social da propriedade. É um debate sobre o quanto nos importamos com valores constitucionais como a proibição do trabalho escravo, o desenvolvimento urbano ou a proteção ao meio ambiente.

Estabelecer prioridades entre esses valores pode ser uma discussão legítima. Mas uma Constituição a gosto do freguês, como quer a PEC, é minar o próprio Estado democrático de Direito.

Bianca Tavolari

Professora do Insper

TENDÊNCIAS / DEBATES

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