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Renato Janine Ribeiro

Os outros elementos do fascismo

Não se salva a democracia terceirizando sua defesa

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O professor da USP Renato Janine Ribeiro, ex-ministro do Educação no governo Dilma - Marcus Leoni - 14.mai.19/Folhapress

Afirmei nesta Folha, em meu artigo “A Flip e o fascismo” (16.jul), que a principal diferença entre o fascismo e outros autoritarismos de extrema-direita é que ele tem militantes ativos, empenhados, empolgados: quem o apoia não se envergonha de usar a violência de forma banal e corriqueira. Foi o caso dos ataques a Glenn Greenwald, durante a Flip, e das ameaças a Miriam Leitão, convidada a outra feira literária.

Mas há mais dois fatores, pelo menos, que distinguem o fascismo do restante da extrema-direita: um é o desgaste ou destruição das instituições; o outro, a invasão totalitária da vida privada. Mussolini dizia: “Nada acima do Estado, nada contra o Estado” —e, pior ainda, “nada fora do Estado”. Ora, numa democracia o Estado tem várias instituições que se equilibram, fazendo o que chamamos de pesos e contrapesos. No Brasil, por forte que seja o presidente, seu poder é limitado por ao menos quatro instituições civis que pertencem também ao Estado. Como vão elas?

O Supremo Tribunal Federal, instituição decisiva por resolver as pendências em última instância, oscila. Se é verdade que limitou (poucas) medidas inconstitucionais de Jair Bolsonaro (PSL), dizem que o presidente Dias Toffoli teria alertado seus colegas a não enfrentarem um poder que comanda “300 mil homens armados”. Se a cúpula do Judiciário tem medo, o que devemos nós, simples cidadãos, sentir?

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) receia que um veto à indicação do deputado Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington (EUA) leve o Planalto a congelar emendas senatoriais. E a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, evitou atritos com o presidente.

A rigor, das quatro grandes instituições civis do Estado, apenas a Câmara, por seu presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ), cumpre o papel de contrapeso a um presidente que pesa demais. Isso para não citar ataques aos órgãos que pensam, como universidades e institutos de pesquisa, enfraquecidos quando Judiciário e Legislativo não exercem plenamente seu papel constitucional.

O outro fator do fascismo é a invasão da vida privada. Uma das bases da democracia é o respeito às escolhas e modos de ser diferentes. Não se pode impor religião, opção filosófica, política, vocação, casamento a outrem. É o que Benjamin Constant chamou de “liberdade moderna”, numa conferência de 1819.

Aqui estaríamos mais protegidos do fascismo? O problema é que assistimos a uma forte pressão sobre a verdade, os fatos e as escolas. Quando pais de alunos não querem que seus filhos conheçam a cultura africana —da qual descende mais de metade da população brasileira—, ficamos perto do fascismo. Ou quando se corta o financiamento da pesquisa, em especial daquela que não agrada ao governo de plantão, seja na sociologia, seja na biologia.

O que nos protegerá do fascismo? Instituições são elemento positivo da democracia, mas não bastarão se não houver empenho forte dos cidadãos em defender não só suas vidas privadas como o caráter democrático dessas instituições. E a própria vida privada, que certamente não se curvará ao fascismo, traz um problema —que Constant apontava há 200 anos: o risco de nos fecharmos nela, nos desinteressando da política. É a nossa grande diferença dos gregos antigos, que podiam passar o dia debatendo a coisa pública.

Porque ninguém pense que, terceirizando a defesa da democracia para as instituições, se salva a democracia. Não há República que sobreviva se os cidadãos não tiverem, como dizia Montesquieu, virtude: no caso, a disposição de lutar pelo bem comum, contra um poder que se desmede.

Renato Janine Ribeiro

Professor titular de ética e filosofia política da USP, é presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015); autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

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