A sociedade brasileira está confusa, mal-humorada, bipolar. Vivemos um momento no qual é impossível —e, para muitos, irrelevante— distinguir o principal do acessório. O importante, seja para os fãs de Bolsonaro, seja para os que o odeiam, é ficar indignado. Análises mais abrangentes não dão ibope: o que interessa é expressar a “torcida”, desancar o inimigo, desqualificar o oponente.
As pesquisas mais recentes sobre o assunto, como o Datafolha de 5 de outubro de 2018, mostram que 69% dos brasileiros concordam que a democracia é preferível a qualquer outro sistema de governo. O número é vigoroso, o maior da série histórica. Deveria nos encher de orgulho numa época em que as livrarias estão atoladas de livros sobre a debacle da democracia. Mas o grande balizador da opinião pública não é o regime político, não é o Flamengo, não é a Rede Globo, é a Lava Jato.
O país parece dividido entre aqueles que são favoráveis à operação, não interessando os limites legais e institucionais aos quais ela deveria se circunscrever, e os que são contra, fundamentalmente os petistas, que se consideram perseguidos pela ação de Sergio Moro e seus intrépidos procuradores. No meio do caminho, um grupo, certamente minoritário, no qual me incluo, que apoia o combate à corrupção, mas entende que ele deve se dar amparado nos devidos trâmites legais.
O interessante é que, no afã de apoiar a condenação dos corruptos, os defensores da Lava Jato a qualquer custo cospem no prato da democracia —a mesma democracia que consideram a melhor forma de governo e está longe, muito longe, de ser o regime do “vale-tudo” ou uma terra de ninguém. John Wayne podia dar certo nas tabernas do faroeste, mas não tem nada a ver com leis e tribunais. Perdeu-se totalmente a referência.
Quem apoia a Lava Jato estrilou contra a Lei de Abuso da Autoridade. Ora, a história da democracia pode ser sintetizada como o avanço progressivo da delimitação do poder discricionário do Estado e seus agentes. Thomas Marshall já apontou essa trajetória em três grandes ondas da expansão dos direitos do cidadão. Primeiro, no século 18, os direitos civis: à vida, à segurança e à liberdade individual.
Depois, no século 19, os políticos: basicamente a soberania popular e a possibilidade de participação. No século passado, afloraram os direitos sociais, como trabalho, saúde, educação, alimentação e mesmo renda.
Depois, há uma visão profundamente equivocada do papel da Justiça. Vivemos uma situação na qual a Justiça é considerada boa quando prende e ruim quando solta. Às favas as leis, o direito de defesa, as garantias constitucionais etc. O Supremo Tribunal Federal, que tem lá seus defeitos, mas é o guardião máximo da Constituição, absorve a ira da sociedade —responda rápido: você torce por Rodrigo Janot ou Gilmar Mendes?— porque sinaliza algo que deveria ser considerado banal: nossa Lei Maior precisa ser respeitada!
Tome-se, finalmente, os diálogos divulgados pelo site The Intercept. Como são analisados? Os bolsonaristas vociferam contra Greenwald, esta Folha e a revista Veja, considerando-os esquerdistas militantes, agentes marxistas disfarçados e defensores da corrupção desenfreada. Do lado oposto, a esquerda festeja as revelações e considera que todos os processos da Lava Jato, bem como as condenações, devam ser anulados.
Nesse clima de “indignismo” e nessa polarização que está mais para MMA do que para deliberações na ágora grega, a possibilidade de sucesso de uma opinião mais ponderada não é muito expressiva. Mas vá lá. A Constituição existe para ser acatada, criminosos devem ser condenados após cumpridas as exigências legais e observado o amplo direito de defesa, juízes devem ser imparciais e cada um deve ser responsabilizado por seus atos. Será que é pedir muito?
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.