Ataques aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, além de rotineiros, têm surgido de todos os lados. O último órgão oficial a colaborar com a violação de direitos fundamentais foi o Conselho Federal de Medicina, que editou a resolução 2.232 sob o pretexto de tratar acerca de normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. Traz disposições que limitam ou impedem o direito de exercer sua autonomia quanto ao tratamento a que poderá ser submetido.
Na mais gritante violência ao princípio da dignidade, retirou-se da mulher grávida o direito de decidir sobre seu próprio corpo e tratamento, pois qualquer manifestação de sua vontade pode caracterizar abuso de direito em relação ao feto. Ou seja, permite que condutas obstétricas não baseadas em evidências médico-científicas e procedimentos dolorosos, invasivos e desnecessários, como a episiotomia (incisão na região do períneo) e a manobra de Kristeller (pressão externa do ventre), sejam adotados sem o prévio consentimento da mulher.
Isto num cenário em que uma entre cada quatro mulheres, de acordo com pesquisa da Fundação Perseu Abramo de 2010, já sofreu violências físicas ou psíquicas por equipes de saúde, o que demonstra que o Brasil já tem uma trajetória de violação da autonomia das mulheres. Até mesmo na hipótese de aborto permitido em lei, aquele no qual não há outro meio de salvar a vida da gestante, ficaria a critério exclusivo do médico escolher entre a vida da mulher ou a manutenção da gestação.
A resolução contraria as próprias normas do CFM, já que o artigo 24 do Código de Ética Médica prevê como infração ética o médico deixar de garantir à paciente o direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou bem-estar ou usar da sua autoridade para limitar autonomia da paciente. Os artigos 22 e 31 ditam que a única situação em que caberá limitação ao direito da paciente em escolher ou recusar a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas é na hipótese de iminente risco de morte.
Trata-se, assim, de uma escolha política que identifica a mulher unicamente com a função reprodutiva e que tem como consequência o controle do corpo feminino, colocando em xeque conquistas dos direitos humanos das mulheres, como os direitos sexuais e reprodutivos.
O CFM tem a incumbência de supervisionar a ética profissional, cabendo-lhe zelar e trabalhar pelo desempenho ético da medicina. Logo, para que esse órgão desempenhe tão importante função, deve exercer seu poder regulamentar de acordo com os direitos constitucionais, como o direito de autonomia, fruto do direito à intimidade, privacidade e liberdade de escolha, e os direitos reprodutivos das mulheres, que gozam de especial proteção em âmbito internacional, reconhecidos como direitos humanos na Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento em 1994, garantindo à mulher o direito de ter controle sobre o seu próprio corpo.
A resolução 2.232, portanto, é um verdadeiro retrocesso por validar práticas médicas que, ao prescindir do prévio consentimento, ferem a autonomia e a autodeterminação das mulheres, como se sua existência só se justificasse enquanto relacionada ao outro —isto é, enquanto mãe no exercício da função reprodutiva, em grave ofensa à autodeterminação, à liberdade e à dignidade humana.
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