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Ricardo Lewandowski

Domínio do fato

Condenações recaem sobre dirigentes de corporações

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Reportagem publicada em um jornal econômico revela que sócios, diretores e gerentes de empresas viram-se condenados em 82% dos casos submetidos à Justiça criminal. O dado foi obtido mediante levantamento de decisões proferidas por cortes estaduais e tribunais federais entre 2013 e 2019.

Apurou-se que, como as corporações geralmente não figuram como rés em ações penais, as condenações vêm recaindo sobre seus dirigentes, sobretudo em situações nas quais as provas não permitem identificar quem foi o responsável pelo cometimento dos delitos. Tais casos têm origem em processos envolvendo discussões tributárias, societárias ou ambientais, porém se desdobram em feitos criminais a partir de denúncias oferecidas pelo Ministério Público. 

O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, durante sessão em Brasília - Adriano Machado - 04.dez.18/Reuters

Segundo a pesquisa, os gestores são apenados por decisões ou atos de terceiros, mesmo sem qualquer evidência de que deles hajam participado direta ou indiretamente. Um criminalista atribuiu esse alto índice de condenações ao emprego indevido da teoria germânica do “domínio do fato” por parte do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do chamado “mensalão”, cuja ótica se espalhou pelas demais instâncias judicantes, levando-as a responsabilizar os executivos apenas com base na presunção de que estes, em razão da posição ocupada, teriam ciência dos malfeitos praticados.

Interessantemente, logo após o referido julgamento, o jurista alemão Claus Roxin, um dos principais elaboradores dessa teoria, a princípio concebida para enquadrar chefes de regimes de exceção que praticavam crimes por meio de subalternos, em entrevista concedida a esta Folha em 11 de novembro de 2012, esclareceu o seguinte: “A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta”. 

O jurista alemão Claus Roxin durante seminário de direito penal no Rio de Janeiro - Daniel Marenco - 30.out.12/Folhapress

Isso porque, na área penal, para que se condene alguém é preciso provar cabalmente que agiu com a intenção de alcançar o resultado criminoso ou assumiu o risco de produzi-lo. Mesmo nas hipóteses de imprudência, negligência ou imperícia exige-se, para a condenação, prova irrefutável dessas falhas comportamentais. Na seara civil, administrativa ou consumerista, ao contrário, as consequências de um ilícito podem ser imputadas a alguém mediante a simples comprovação do dano, sem qualquer indagação acerca da vontade de seu causador, porque restritas à esfera patrimonial.

A inflexão jurisprudencial, que começa a atingir as atividades negociais, parece agasalhar uma espécie de responsabilidade penal objetiva, repudiada pelos doutrinadores, na qual também não se cogita de dolo ou culpa do infrator. Consta inclusive que já estaria inibindo o engenho e arrojo inerentes ao empreendedorismo. Por isso, muitos estranham o apoio ainda conferido por parcela do empresariado à escalada persecutória em curso no país.

Tolera investigações oficiosas, delações direcionadas, vazamentos seletivos, diligências extravagantes, conduções coercitivas, acusações hiperbólicas, prisões espetaculares, penas exorbitantes e outras medidas abusivas, sendo-lhe completamente indiferente o esgarçamento da presunção constitucional de inocência. Talvez acredite que essas práticas anômalas só alcancem desafetos habituais, corruptos notórios ou criminosos comuns. Desavisada, não consegue perceber a grave ameaça que encerram para a segurança jurídica de toda a sociedade.

Ricardo Lewandowski

Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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