Descrição de chapéu
Eugênio Bucci

Esses pitis de vivandeiras

Desgraçadamente, novo ataque é só mais um detalhe

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Ao determinar que seu governo deixará de assinar esta Folha, o presidente da República ofendeu a reputação não da Folha, mas dos outros diários, aqueles que ainda frequentarão as mesas do Poder Executivo. Pense bem o leitor. Mandando suspender a assinatura da Folha por julgá-la crítica e independente em excesso, o chefe de Estado deixa no ar a insinuação de que considera os outros jornais submissos e acríticos. Logo, ofendeu a todos eles.

Diante do acinte, a ANJ (Associação Nacional dos Jornais) deveria se declarar ultrajada e anunciar, com urgência, que os veículos assinados pelas repartições federais vão suspender as entregas unilateralmente. A justificativa é óbvia: se o poder os considera bonzinhos e obedientes, não querem mais receber dinheiro desse poder. Seria um gesto de repúdio legítimo e um alerta à nação.

O jornalista e professor da ECA-USP Eugênio Bucci - Reinaldo Canato - 11.set.19/Folhapress

Na verdade, a reação deveria ser ainda mais enfática, uma vez que o presidente não se limitou ao corte de assinaturas —resolveu também intimidar os anunciantes: “E quem anuncia na Folha de S.Paulo presta atenção, está certo?” 

Com seus chiliques sem limites, o inquilino do Alvorada acha que pode ameaçar quem quiser. Como de hábito, está errado. Por certo, nenhuma lei o obriga a assinar a Folha, assim como nenhuma lei o impede de fazê-lo. Mas há um princípio constitucional, o princípio da impessoalidade, que o proíbe de usar o seu gosto pessoal como critério para atos da administração pública. 

Embora tenha direito de não gostar da Folha, ele não tem o direito de determinar tratamento persecutório ao jornal só porque não gosta dele. Pelo mesmo princípio, não pode promover campanhas discriminatórias com base em implicâncias pessoais —e não pode chantagear clientes, leitores, fontes, colaboradores ou anunciantes de um órgão de imprensa. Não pode sair por aí amedrontando cidadãos de bem que cumprem a lei.

A despeito do cargo que ocupa, porém, o governante que instituiu o método da gestão por desaforos lança ameaças contra quem lhe dá na telha. O grau de absurdo é tamanho que, olhando de longe, um observador desavisado tem a impressão de que o homem surtou. Antes fosse só isso, mas a coisa é pior. Há lógica na demência presidencial. Esses pitis de vivandeiras —as vivandeiras em recidiva que adoram um AI-5 e se refestelam em chamar um torturador de “herói nacional”— são coerentes e certeiros. 

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) anuncia cancelamento de assinaturas da Folha pelo governo federal em live nas redes sociais - Reprodução/facebook@jairmessias.bolsonaro

Quando acusa a TV Globo de “patifaria” ou quando xinga repórteres, o presidente abre atalhos retóricos para o autoritarismo. Democracia para quê? O país de seus sonhos não tem gays, ateus, intelectuais, feministas, artistas, escritores ou professores de ciências humanas; não tem cientistas que estudam incêndio na floresta ou historiadores da Comissão Nacional da Verdade. Portanto, não tem jornalistas. O país de seus sonhos (e dos nossos pesadelos) tem o fanatismo no lugar da verdade factual. Daí o ódio às Redações críticas. 

 
O personagem em pauta, com atitudes aparentemente disparatadas, cumpre diligentemente a estratégia de jogar a imprensa no descrédito, na miséria e no exílio. Servo de ideologias obscurantistas, teme a transparência, a fiscalização e o questionamento. Corta assinaturas da Folha porque não consegue extinguir a Redação inteira logo de uma vez, como gostaria (no encerramento da campanha eleitoral, prometeu aos eleitores um futuro “sem Folha de S.Paulo).
 
Seu novo ataque contra este jornal é degradante, repulsivo e, desgraçadamente, é só mais um detalhe.
Eugênio Bucci

Jornalista e professor da ECA-USP

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