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Vladimir Goitia

Evo Morales renega até as próprias conquistas

Cabe a ele indicar um candidato e salvar a democracia

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“Ama sua, ama llulla (pronuncia-se ‘lhulha’), ama quella”. Na língua quéchua significa “Não seja ladrão, não seja mentiroso, não seja preguiçoso”. Trata-se de três preceitos éticos do Império Inca, do qual a Bolívia fez parte no século 13.

Evo Morales, que no último dia 10 renunciou ao cargo de presidente depois de 14 anos, pecou em pelo menos dois desses fundamentos considerados essenciais pelos incas para uma gestão eficiente, democrática e transparente.

Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dá entrevista no México, onde está asilado - Edgard Garrido - 15.nov.19/Reuters

Não existem provas de que se tenha apropriado de bens materiais de forma ilícita nesse período, embora seja acusado disso. Mas roubou. Roubou dos bolivianos o direito de escolher um outro presidente que não ele ao fraudar claramente as eleições de 20 de outubro, desencadeando uma onda de protestos e de violência, com mais de 20 mortos e centenas de feridos.

Morales também mentiu. Desde 2009, quando terminou o seu primeiro mandato, não cansou de violar a Constituição para se perpetuar no poder. Mente ainda ao dizer que houve um “golpe ardiloso e nefasto” contra ele. Isso é tão falso como foram falsas as eleições de outubro.

Para entender esse imbróglio da conturbada história recente da Bolívia é necessário voltar a 2005, quando Evo foi eleito pela primeira vez, transformando-se no primeiro descendente indígena a chegar ao poder.

De 2000 a 2005, o país atravessou uma série de convulsões sociais, fruto da corrupção e da decomposição de partidos políticos tradicionais que governavam a Bolívia até então. Foi assim que Morales surgiu como alternativa, porque os bolivianos estavam cansados do desmando de seus governantes.

Ele podia ter saído pela porta da frente do Palácio Quemado, em La Paz, como uma dos maiores e mais importantes presidentes que o país teve. Entre 2005 e 2018, reduziu a pobreza de 63% para 35%, fez o PIB (Produto Interno Bruto) saltar de US$ 9,5 bilhões para US$ 40,6 bilhões e conseguiu ainda elevar a expectativa de vida dos bolivianos de 65 para 70 anos.

Implementou também a chamada economia plural, que permitiu melhorar as condições de vida dos indígenas —a maioria da população—, gerando uma espécie de nova classe média, além de pavimentar o caminho para uma democracia inclusiva e participativa.

Nesse meio tempo, entretanto, essa nova fatia da população foi ficando insatisfeita. Começou a exigir não apenas comida no prato, mas qualidade e independência das instituições. Evo Morales, por sua vez, agia para se perpetuar.

Sua popularidade começou a minguar. Os índices de apoio derreteram de 63%, em 2014, eleito ao terceiro mandato, para 49% em 2016, quando decidiu levar adiante um referendo para mudar as regras democráticas em busca de reeleições indefinidas. Naquele ano, 51% disseram “basta”.

O resultado do referendo o proibia de aspirar a um quarto mandato. Mas mais uma vez ele preferiu ignorar a lei. Essa foi apenas mais uma das violações constitucionais desta eleição. Morales não apresentou um órgão eleitoral isento. Com isso, a falta de imparcialidade, a manipulação de dados, a falsificação de votos e a incongruência de informações sobre o número de eleitores mostraram tratar-se da mais gritante fraude num processo eleitoral jamais visto no país.

Cansados de ver leis rasgadas, falta de independência entre os poderes, corrupção, abusos de poder, perseguição, clientelismo, delitos e subordinação da Justiça, os bolivianos saíram às ruas em defesa da Constituição. Morales mandou a polícia reprimir, mas ela se negou. Colocou o país à beira de uma guerra civil.

O caos e a violência nas ruas do país fizeram as Forças Armadas sugerirem a renúncia de Evo Morales em nome da paz. Não foi uma exigência. Para uma sugestão sempre há alternativa de dizer “não”. Ele optou por deixar o cargo.

Os militares não se levantaram contra o então presidente, nem contra ninguém, e muito menos o prenderam. Não houve blindados nas ruas. Nem tomada de poder. O Congresso resolveu a renúncia do presidente conforme a Constituição.

Que golpe é esse?

Em busca de se eternizar, Morales renegou seus ancestrais, a Constituição e suas próprias conquistas. Desde o México, onde escolheu se exilar, entra em contradição profunda e é incapaz de aceitar a participação de lideranças de seu partido em negociações com o atual governo em transição, como se isso não fosse possível sem sua participação.

Cabe a Morales abandonar essa narrativa, indicar um candidato para novas eleições e, assim, salvar a democracia da Bolívia.

Vladimir Goitia

Boliviano naturalizado brasileiro, é jornalista especializado em economia, comércio exterior e relações internacionais

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