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Manoela Miklos

O caso 'Mariella'

Bolsonaro trata assassinato com desdém ou deboche

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A live de Jair Bolsonaro reagindo ao que o Jornal Nacional disse sobre sua eventual conexão com o caso Marielle deixou boa parte do país perplexa. A declaração de guerra ao governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), é chocante. Os termos de baixo calão e as ameaças à Rede Globo são igualmente assustadoras. Sobrou para o Ministério Público, para a Polícia Federal. O presidente que viajava em busca de parceiros comerciais e insinuava alguma tentativa de prudência em entrevistas desapareceu. O Brasil viu ali o Bolsonaro de sempre: intempestivo e colérico. 

Foram muitos os absurdos ditos. Mas o pior foi ver o desdém, premeditado ou inconsciente, diante das expectativas justas de que o presidente se comporte como chefe de Estado —e não como chefe de família que defende sua cria malcriada.

A ativista feminina Manoela Miklos, fundadora do coletivo Agora É Que São Elas - Gabriel Cabral - 19.abr.18/Folhapress

Vivemos o descalabro do bom debate. Quase nada nos surpreende mais quando se trata da falta de retidão dos Bolsonaros. A família age como uma corte em vez de desempenhar o papel de representantes eleitos. Disputas palacianas substituem discussões valiosas sobre políticas públicas.

O jornalismo político, em função dessa dinâmica nefasta, frequentemente sucumbe, e as notícias viram relatos de segredos de alcova. Vamos mal, e há pouco que valha comentários além do que já é dito online e off-line. 

Mas a live raivosa do final de outubro demanda de nós toda a atenção. Por incrível que pareça, oferece sim oportunidade para iluminar novas dimensões do revés do nosso Estado de Direito. Uma delas, profundamente desconcertante, reside no fato de o presidente insistentemente se referir ao “caso Mariella”

O presidente indignado reclamou da imprensa, das instituições, da oposição, de segmentos insatisfeitos da sua base e dos movimentos sociais. Reiteradas vezes rejeitou qualquer ilação sobre sua conexão com as execuções da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Bolsonaro tentou construir uma narrativa desenhada para fazer frente ao bordão trágico que a esquerda brasileira repete e os progressistas do mundo acolhem. Disse querer saber quem mandou matar Marielle, mas queixou-se de não saber quem mandou matá-lo —uma referência ao atentado que sofreu durante a campanha eleitoral. O que vale nota é: em muitas dessas passagens, ele se referiu a Marielle Franco como “Mariella”.

O presidente Jair Bolsonaro, na Árabia Saudita, durante live em que faz críticas à imprensa - 30.out.19/AFP

É possível que o presidente simplesmente confunda amiúde o nome de Marielle Franco. É também possível que ele deliberadamente rejeite pronunciar corretamente o nome dela. Ambas as hipóteses revelam a mesma desgraça: Bolsonaro não se dá ao trabalho de dizer o nome de Marielle como se deve, por negligência ou despeito. 

O mundo inteiro hoje olha para o Brasil agoniado. O assassinato de Marielle é lembrado por todos, lá e cá, por ser a ilustração mais bem acabada desse Brasil que viola sistematicamente os diretos humanos e aniquila quem os defende. Mas o presidente não se digna a decorar o nome de Marielle Franco.

Talvez Bolsonaro esteja falando a verdade e não faça parte do conluio que nos arrancou Marielle Franco. Mas não faltam provas de sua falta de zelo, por descaso ou deboche, com esse caso tão emblemático. Isso já é suficientemente grave.

Manoela Miklos

Cientista política, doutora em relações internacionais pela PUC-SP, especialista em direitos humanos e ativista feminista

TENDÊNCIAS / DEBATES

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