Descrição de chapéu

Sentido da República

Aos 130 anos, e apesar dos avanços, regime ainda não torna nação menos desigual

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

“Proclamação da República”, tela de Benedito Calixto, que mostra o Campo de Santana, no Rio, em 15.nov.1889 - Reprodução

O Brasil apresenta trajetória institucional singular, no contexto das Américas, não apenas por ter sido colonizado pela coroa portuguesa. Uma série de razões também levou o sistema republicano a se implantar tardiamente por aqui.

A inauguração do regime só ocorreu no fim do século 19, mais de cem anos depois de os Estados Unidos terem aberto esse caminho —seguido como regra pelas nações americanas conforme vieram se tornando independentes.

Há 130 anos a revolta liderada por um marechal simpático à monarquia culminou na aniquilação do Império e na proclamação da República. O golpe pretoriano foi sucedido por uma ditadura comandada pelo próprio Deodoro da Fonseca.

O presidente voltaria a usurpar o poder em 1891, quando fechou o Congresso, mas em seguida sucumbiria ao contragolpe consumado pelo vice, Floriano Peixoto, oficial apoiado por fração musculosa da caserna e da oligarquia nacional.

O movimento nascido para combater o elemento absolutista encarnado no imperador floresceu em contradições assim que arrebatou o Estado. O espectro do caudilhismo, da tutela militar e do parasitismo oligárquico assombrou a República no seu primeiro século.

Também o germe da exclusão social se hospedou naquele organismo heterogêneo. O Partido Republicano Paulista mal disfarçava a ligação com o interesse escravocrata. Para a sigla, de 1873, acorreram senhores frustrados com a retomada da marcha abolicionista.

Seria cair em reducionismo, no entanto, deixar de contemplar os aspectos virtuosos da rede de incoerências que constituiu a caminhada republicana no Brasil.

De embates como os de Rui Barbosa contra investidas arbitrárias do poder público, já nos primeiros anos do novo regime, emergiu a chamada doutrina brasileira do habeas corpus, patrimônio do Estado de Direito até hoje cultivado no Supremo Tribunal Federal.

A resistência de republicanos e abolicionistas precoces, como Luiz Gama, à estupidez dos plutocratas que comandavam o seu partido legou-nos o inconformismo com a discriminação pela cor da pele e com o abandono da maioria da população à pobreza e à ignorância.

“O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade —tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso país. Privilégio de religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição, isto é, todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou a de alguns sobre muitos.”

Em trechos como este, o Manifesto Republicano (1870) exprimiu o sentido primordial do regime que pretendia implantar. Pelo contraste com o império das desigualdades artificiosas, propugnava por um sistema em que a isonomia passasse a prevalecer de fato.

Nada mais atual, decerto. Sem embargo dos avanços substanciais conquistados sob a Constituição democrática de 1988, ninguém há de negar que o programa consignado pelos primeiros republicanos está longe de ser completado.

Todos são iguais diante da lei, mas o acesso à Justiça é mais largo para os ricos. O fato de criminosos do colarinho branco começarem a sair detrás das grades após um lapso de esperança na luta contra a corrupção é uma mensagem não republicana das autoridades.

Todos são iguais diante da lei, mas a má qualidade do ensino público conduz a maioria das crianças ao mesmo labirinto de baixa renda e imobilismo social que aprisiona seus pais, prolongando a chaga da desigualdade. O gasto do governo com a elite universitária é desproporcionalmente elevado. Inépcia e patrimonialismo mantêm metade da população sem coleta de esgoto.

Todos são iguais diante da lei, mas pretos e pardos ainda ganham menos e morrem mais de causas evitáveis que os brancos. Há muito mais homens que mulheres nos cargos de maior destaque das empresas e na representação política.

A lei a todos iguala, mas algumas categorias profissionais desfrutam de regimes especiais de trabalho. O vencimento de um servidor público é quase o dobro do de um assalariado da iniciativa privada com características equiparáveis.

A lei fundamental não discrimina, mas um novelo de regramentos e ações discricionárias dos agentes estatais torna a atividade empresarial de uns mais favorecida que a de outros. Em vez de dedicar energia a aumentar sua produtividade, grandes empresas se especializaram nos lobbies para arrancar vantagens da burocracia.

A igualdade de tratamento é a regra, mas alguns procuram impor sua moral e sua visão de mundo ao conjunto da sociedade. A liberdade do cidadão de conduzir como quiser a vida privada e de se expressar nem sempre encontra a devida proteção daqueles que deveriam zelar pelos direitos fundamentais.

Todos se submetem à lei, mas o presidente da República se vale do que deveria ser o poder impessoal do Estado para resolver suas querelas políticas. Discrimina, ameaça e edita normas para perseguir adversários. Presenteia amigos.

É dia de comemorar os 130 anos da República sem perder de vista que, apesar dos avanços, “a monstruosa superioridade de alguns sobre muitos” se mantém à espreita.

editoriais@grupofolha.com.br

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.