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Fernanda Chaves

A quem interessa federalizar o caso Marielle Franco?

De súbito, defesa apareceu na agenda do governo

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O Superior Tribunal de Justiça deve analisar a federalização das investigações sobre a execução da Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. O pedido veio de Raquel Dodge em seu último dia frente à Procuradoria-Geral da República.

Após mais de 600 dias de silêncio, de súbito, surgiu na agenda do governo federal a defesa intransigente do deslocamento de competência após a veiculação de notícias que relacionam nomes da família presidencial aos suspeitos do crime.

Mulher caminha ao lado de grafite em homenagem a Marielle Franco, no Rio de Janeiro - Sergio Moraes - 30.out.19/Reuters

O ministro da Justiça, Sergio Moro, que adotara até então silêncio absoluto sobre o crime, alterou drasticamente o padrão e, em entrevista de alcance nacional, considerou ser um “total disparate” a suposta menção ao presidente da República, Jair Bolsonaro, por parte da investigação. Da mesma forma, o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, sai em campanha pela federalização devido aos “fatos novos”.

Ora, fatos novos? Nome do presidente? Em que cartilha consta que seriam essas as prerrogativas para um pedido de deslocamento de competência de investigação de um crime? Por lei, a federalização pressupõe um rol de impedimentos e violações específicos que justifiquem a medida, é um instrumento processual de raríssimo uso e provavelmente foi aventado pela ex-PGR Raquel Dodge em um momento muito anterior aos avanços logrados pela investigação estadual. Ou sei lá porque outros motivos.

Apesar da demora em se chegar à conclusão definitiva do caso e até da suspeita de obstrução das investigações, o fato é que temos a instauração de um inquérito que chegou à identificação de dois supostos executores. A Delegacia de Homicídios e o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado, do Ministério Público, identificaram e prenderam esses acusados —um deles é suspeito de ser um dos principais matadores a serviço do crime do Rio de Janeiro. As investigações vêm obtendo desdobramentos, como a descoberta da desova de armas no mar, entre as quais pode estar a utilizada no crime.

Os presos acusados de fuzilarem o carro de Marielle são suspeitos de servirem a uma milícia do Rio de Janeiro, uma modalidade de crime específica e territorial —cujo combate, isso sim, deveria estar entre as prioridades do governo federal.

Mais do que falar do êxito da investigação do caso na esfera estadual —que, sim, tem suas fragilidades e padece de muita demora— urge ressaltar que: 1 - não há incapacidade das instâncias e autoridades do poder público em oferecer respostas; 2 - e, principalmente, não há desejo pela federalização por parte da família, dos amigos, dos advogados do caso, das entidades que acompanham nem por parte desta que aqui escreve, sobrevivente do atentado. Esses seriam os dois pontos cruciais para justificar o deslocamento de competência para a esfera federal.

Até hoje não foi esclarecida a relação de familiares do presidente com os acusados presos —e, por isso, não cabe a mim fazer suposições. Evidentemente, linhas investigatórias não antecipam culpa. Por outro lado, a notícia de que as autoridades estaduais estão investigando um dos filhos do presidente me parece ser um fato jornalístico inequívoco, sobre o qual deveria ter ocorrido uma cobertura mais ampla dos meios de comunicação de massa.

Da forma como os últimos eventos se sucederam, torna-se inevitável não questionar a imparcialidade de atuação do ministro da Justiça, do procurador-geral e do próprio presidente da República, que subitamente despertaram de um profundo silêncio de mais de 600 dias.

Foi dada margem para que se pudesse imaginar que os atores em questão buscam a federalização do caso para ter controle sobre as investigações, e não para de fato solucionar os assassinatos.

Assim, operam para politizar o caso, quando na verdade o povo brasileiro espera o contrário: uma investigação isenta, técnica, que possa apresentar as respostas que o mundo todo espera há quase dois anos: afinal, quem matou e quem mandou matar Marielle Franco?

Fernanda Chaves

Jornalista, é ex-assessora de Marielle Franco e sobrevivente do atentado que matou a vereadora e seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018

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