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Fernando de Mello Franco

Da cobertura vislumbraremos as crises da cidade

É um equívoco reduzir a política urbana à questão imobiliária

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O mercado imobiliário em São Paulo está em curva ascendente. O ágio de 169% na recente venda de R$ 1,6 bilhão em Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construção) à Operação Urbana Faria Lima, e as 42 mil unidades lançadas nos últimos 12 meses, são evidências dessa afirmação.

O quadro macroeconômico, taxa de juros e acesso a crédito são os principais responsáveis pela dinâmica desse mercado. Não é válido o argumento de que o Plano Diretor e o zoneamento, aprovados respectivamente em 2014 e 2016, tenham inviabilizado a produção imobiliária durante o período de retração dos últimos anos. Tampouco que seja um empecilho à nova pujança anunciada. Contudo, a revisão do zoneamento está para ser enviada à Câmara Municipal sob esse argumento. Trata-se de uma revisão anacrônica, fora do prazo previsto pela própria lei. Nenhuma política de longo prazo pode ser comprovada ou reprovada sem um tempo mínimo despendido à sua devida implementação e análise.

O professor, arquiteto e urbanista Fernando de Mello Franco - Bruno Poletti - 19.jun.15/Folhapress

Uma lei tão abrangente como essa sempre contém deficiências. A lei aprovada em 2016 apresenta algumas dificuldades à sua aplicabilidade. Porém, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano já anunciou que a grande maioria dos problemas identificados pode ser equacionada através de portarias e decretos. Mas a revisão do zoneamento avança e segue também em defesa às bandeiras da liberação de gabaritos e à redução das outorgas do direito de construção, entre outras. O argumento novamente incide sobre a economia de produção. Prédios mais altos e outorgas menores barateiam custos, favorecendo, assim, os consumidores.

Não deixa de ser irônico observar que uma cobertura é usualmente mais cara que o andar inferior, e assim sucessivamente até o primeiro andar. Pois o preço se refere ao valor do desfrute de uma paisagem socialmente construída, um bem comum, não o valor de produção da unidade. O fato é que o barateamento dos custos costuma ampliar os lucros do empreendedor, ou ser incorporado ao valor pago pelo terreno.

Pense em seu bairro. Provavelmente os interesses de futuros investidores e proprietários —uma minoria— prevalecem sobre os interesses de preservação da qualidade de vida dos moradores já residentes —a maioria. Por isso, a política urbana vigente estabeleceu limites de gabarito nos chamados miolos de bairro, reduzindo os impactos inevitáveis na paisagem e na insolação. Em complemento, incentivou a produção imobiliária para a Rede de Estruturação da Transformação Urbana, eixos de alta oferta de mobilidade e parque fabril subutilizado. Pois o adensamento é necessário em um contexto onde há um déficit habitacional em torno de 600 mil unidades e a expectativa de um crescimento demográfico de aproximadamente 800 mil pessoas.

O debate em curso é pobre. É um equívoco reduzir a política urbana à questão imobiliária. A cidade é mais do que um espaço de produção. É onde todas as dimensões da nossa vida cotidiana acontecem. E nossa vida na cidade enfrenta sérias crises.

Em pesquisa recente desenvolvida para o Lincoln Institute, Bruno Borges, Fernando Túlio e eu analisamos o impacto estimado dos instrumentos de recuperação da valorização imobiliária na mitigação do quadro de mudanças climáticas em São Paulo. Os resultados são tímidos, mas ainda assim positivos e valiosos.

A aplicação dos recursos obtidos pelos Cepacs e outorgas onerosas, combinados com outros instrumentos, podem vir a ser decisivos na expansão da rede de transporte público, diminuição da emissão de poluentes, ampliação das áreas verdes, produção de moradias populares e preservação do patrimônio histórico.

Não é crível pensarmos que a altura dos prédios ajudará nos esforços de democratização do direito à cidade, mitigação dos efeitos da emergência climática, redução das desigualdades, entre tantas outras crises. Ao contrário, a alteração da fórmula de cálculo da outorga onerosa enfraquecerá nossa capacidade de enfrentamento dos problemas sistêmicos que demandam recursos e políticas públicas fortes.

A pressão política que leis complexas sofrem durante sua tramitação no Legislativo sugere questionarmos as razões em se assumir agora esse risco em relação ao zoneamento. Então, o que você supõe que esteja em jogo nessa revisão?

Fernando de Mello Franco

Arquiteto e urbanista, professor da Universidade Mackenzie e consultor em projetos e políticas urbanas; foi secretário municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo (2013-16, gestão Haddad)

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