Descrição de chapéu
Jurema Werneck

É preciso recolocar a utopia

Multidão de desapontados busca um novo sonho

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Tenho lido a conta-gotas o livro “No Enxame - Perspectivas do Digital”, do filósofo Byung-Chul Han, um crítico mordaz da sociedade de consumo. A obra afirma que vivemos tempos de “indivíduos empoderados”. 

São pessoas que confiam profundamente em suas crenças e que, solitárias, se expressam com autoridade pelas redes sociais. Falam todas juntas sem se ouvir, num vozerio que lembra um enxame. Um monte de gente. Mas são um monte de “uns”. Antes, diz o autor, as pessoas eram capazes de defender sonhos coletivos. Eram multidões que falavam em uníssono, embora com divergências. Existia a capacidade de encontrar um terreno comum, um projeto, que mudava o jogo da política. Eram indivíduos com histórias próprias, mas capazes de fazer recuar seus desejos individuais em favor de um projeto coletivo. 

Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, no evento "Mulheres Notáveis do Brasil", em São Paulo - Mathilde Missioneiro - 14.nov.19/Folhapress

Hoje, os muitos “uns” vão para as ruas, mas parecem sozinhos. Haiti, França, Espanha, Colômbia, Hong Kong, Bolívia, Irã e outros —em todos esses lugares, as pessoas protestam para mostrar que estão desapontadas e zangadas com um sistema político que, elas acreditam, não foi capaz de melhorar suas vidas. Infelizmente, na maior parte dos casos, a resposta das autoridades responsáveis tem sido violência policial e perseguições, violando o direito de livre manifestação.

O que as notícias que nos chegam desses lugares contam? Elas sugerem que ir para as ruas denunciar e protestar não tem sido suficiente para mudar as coisas que queremos que sejam mudadas. Faltaria a esse enxame descobrir e enunciar o mundo que se quer construir. Falta o sonho coletivo. Uma nova utopia.

O sonho da minha geração era construir uma sociedade de direitos. Por muito tempo, acreditamos que o Brasil avançava nessa direção. Acreditamos na Declaração Universal do Direitos Humanos —que, em 2019, completou 71 anos. Era uma aposta que parecia ganha quando, em 1988, foi promulgada a Constituição Cidadã. Apostamos que o Brasil poderia escolher um novo rumo institucional. Confiamos que essa escolha teria reflexos na vida cotidiana. E chegamos até aqui.

Hoje, o desânimo nos faz crer que fomos derrotados nessas apostas, apesar do muito e importante que se construiu. No começo de dezembro, nove pessoas morreram durante uma ação policial na favela de Paraisópolis, zona sul de São Paulo. 

O massacre aconteceu enquanto aqueles jovens, muitos recém-chegados à maioridade, se divertiam em um baile funk. O caso engrossou a lista de graves violações de direitos humanos cometidas pela polícia brasileira —uma das mais letais do mundo— e uniu-se à sequência ampla de violências estruturais que ocorrem no Brasil desde a sua fundação. A sociedade de direitos com a qual sonhávamos em 1988 ainda não foi concretizada.

A derrocada dessa nossa utopia, no entanto, é anterior a 2019. O Brasil avançou nos últimos 30 anos, não podemos negar. Mesmo assim, uma parcela ampla da população continuou sem acesso a direitos básicos. 

O cotidiano de tantos e tantas seguiu contrariando a aposta. Nunca se encarcerou tanto no país quanto nas últimas três décadas. O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, uma multidão de pessoas pobres e negras atrás das grades, cerca de 40% delas sem condenação. Nas favelas, crianças são mortas. Nas aldeias, indígenas são assassinados. Para a maioria dos brasileiros, “direitos humanos” não passam de palavras.

As promessas não cumpridas tiveram suas consequências. As pessoas se zangaram. Tomaram decisões baseadas na raiva e no medo. O Brasil elegeu um presidente autoritário, que se opõe abertamente à sociedade civil organizada e aos direitos humanos. 

O enxame, no entanto, está na rua. Quer ser ouvido. Chama para si uma responsabilidade. Quer operar mudanças. Talvez, o que falte é a utopia que poderá unir o enxame. É preciso recolocá-la. Qual é ela? Ainda não sabemos. Podem ser muitas. 

A utopia de Greta Thunberg, seu projeto para o coletivo, é deter o aquecimento global. A de Ailton Krenak é adiar o fim do mundo. Qual utopia vai nos fazer levantar da cama amanhã? O enxame na rua cobra resposta. Precisamos dialogar para descobrir um caminho. Porque o fim do mundo está aqui perto. A utopia? Ainda precisamos construir.

Jurema Werneck

Diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil

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