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Luiz Guilherme Piva

Bacon, esse vilão

Racionalismo do filósofo inglês enfrenta cruzada

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É grande, no pensamento latino-americano, o peso da tradição essencialista. É com base nela que se declara a inautenticidade do passado, já que o conhecimento no momento anterior estaria distante da verdade. Mas esta, contraditoriamente, é uma concepção passadista, porque atua em nome de um outro passado mais antigo e verdadeiro, que abrigaria a essência real das coisas, precedente ao que se nega.

Trata-se de concepção herdeira do essencialismo clássico grego, para o qual os entes encerram a verdade. Essa corrente deu sustentação ao pensamento religioso, escolástico, metafísico e tomista, que predominou na Europa durante a Idade Média, mas depois se concentrou na Península Ibérica e migrou para a América Central e do Sul, presidindo a formação intelectual e social das colônias. Outra corrente, fortalecida a partir do século 18, negou a metafísica e consolidou o império da razão e do experimentalismo, dando base ao iluminismo, ao racionalismo e ao cientificismo —e à história moderna.

O filósofo, cientista e político inglês Francis Bacon (1561-1626), considerado o fundador da ciência moderna - Folhapress

Para ela, que vingou nos países saxões e germânicos e depois migrou para a América do Norte, conformando parte de sua história, não existe a verdade essencial, só o mundo concreto: a verdade é construída pelo conhecimento. Trata-se, assim, de uma proposição com claro sentido de futuro.

O nome fundamental dessa vertente é Francis Bacon (1561-1626), que demonstrou que o essencialismo e a escolástica não eram válidos como forma de conhecimento, uma vez que acreditavam que a mente humana e a fé (a verdade divina) eram capazes de explicar todos os fenômenos da natureza.

Bacon formulou o denominado raciocínio indutivo, método de pesquisa e análise que permitiu que vários trabalhos científicos se desenvolvessem a partir da real observação, dos testes e das comprovações ou refutações de hipóteses acerca dos fenômenos da natureza, independentemente de afirmações religiosas.Um exemplo é Galileu Galilei (1564-1642), que, por provar que a Terra gira em torno do Sol, foi perseguido pela Igreja Católica.

Mas não só nas ciências naturais e exatas. Também fenômenos relativos ao comportamento humano passaram a ser pesquisados e analisados de forma mais rigorosa, possibilitando o surgimento, por exemplo, da sociologia e da antropologia.

Na América do Sul, a partir do século 20, a influência do racionalismo e do iluminismo cresceu, ajudando na modernização das nossas sociedades. Porém —com destaque para algumas regiões—, volta-se recorrentemente ao resgate da tradição essencialista: negam-se os avanços ocorridos na história pregressa (no conhecimento, na sociedade, na cultura) por supostamente estarem distantes do que se considera a verdade entendida como absoluta, associada à fé e a um momento obscuro ainda mais antigo.

O combate aos processos e conquistas científicas que furam o manto escolástico conforma forças políticas que ciclicamente retomam as rédeas ideológicas de partes do continente e renegam trajetos constitutivos da própria civilização.

Trata-se de uma cruzada de combate contra Bacon, tentando travar o futuro que o conhecimento humano constrói cumulativamente, como se se buscasse frear a rotação e a translação da Terra. 

Ela, contudo, se move.

Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de ‘Ladrilhadores e Semeadores’ (Editora 34) e ‘A Miséria da Economia e da Política’ (Manole)

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