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Ricardo Viveiros

Corrupção, poesia e justiça

Em meio à roubalheira, um misterioso texto poético

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Quando no Congresso Nacional são debatidos temas relacionados à corrupção, lembro que há 26 anos acontecia ali a CPI do Orçamento. Eram analisados 84 disquetes apreendidos na Odebrecht, quando se encontrou uma crônica dedicada a quem não tem namorado, redigida em estilo peculiar e sem autoria.

Em meio à realidade envolvendo políticos supostamente corruptos, surgiu o texto poético de inquestionável qualidade. O poder paralelo, que à época já causava danos ao país, mostrava um lado inesperado. Sob risco de punição ao vazar informações confidenciais, o técnico que descobriu o indecifrável texto, emocionado pela beleza e sabedoria da obra, distribuiu cópias no Congresso. Seria mensagem em código cifrado? Revelaria novos envolvidos nos crimes investigados? Um possível corruptor escreveria com tanta sensibilidade e perfeição? Ninguém buscou as respostas. Todos queriam os valores das propinas e os nomes dos parlamentares que as teriam recebido.

O jornalista e escritor Ricardo Viveiros - Lela Beltrão - 31.mai.16/Folhapress

O texto afirmava que não ter namorado era “tirar férias do melhor de si”, e no final recomendava uma dose de insanidade para evitar a solidão: “enlou-cresça”. Só não considerava apelar à condição de mal acompanhado, como no caso dos investigados e suas relações.

Entre desvios de recursos públicos feitos por deputados e senadores, os “anões do Orçamento”, surgia algo metafórico que gerou piadas. O senador gaúcho José Paulo Bisol (PT) ironizou: “É... Os brutos também amam”. Já o deputado baiano Benito Gama (PFL) arriscou a rima: “A CPI do Orçamento mais parece um tormento. Tem de tudo um pouco, e o pior é ouvir lamento”.

Enquanto isso, o deputado Geddel Vieira Lima (então PMDB-BA), envolvido nas denúncias, era dos que mais reclamavam junto à CPI. E, no espírito do texto encontrado, gerava versos. A ele atribui-se frase dita a um dos investigadores: “Se você é vidente, verá que sou inocente!”. Pelo visto, não era. No apartamento emprestado por um amigo, em Salvador (BA), 24 anos depois, foram encontradas nove malas e sete caixas de papelão, somando R$ 51 milhões e US$ 2,688 milhões.

O que se descobriu, afinal, além de que há quase 30 anos já havia corrupção endêmica envolvendo empreiteiras, parlamentares e gestores públicos? Que isso poderia ter sido evitado desde então, sem causar prejuízo ao Brasil? Não. O problema seguiu acontecendo e se agravando. 

 

A novidade ficou por conta do poético texto ser apenas trabalho universitário da filha de um diretor da Odebrecht que, ao acaso, misturou-se aos demais disquetes do Setor de Operações Estruturadas (entenda-se “propinoduto”) da empreiteira.

Outra descoberta foi que a imaginada mensagem codificada, que apontaria outro possível envolvido na roubalheira, era uma crônica de Carlos Drummond de Andrade: “Namorado: ter ou não, é uma questão”. O poeta maior da literatura brasileira, morto em 1987, não viu seu texto arrolado na CPI. Mas, como todos nós, teria ficado sem entender o porquê da demora para que as pessoas envolvidas começassem a ser denunciadas, investigadas, processadas, condenadas e, finalmente, punidas. Resta a máxima popular: “Antes tarde do que nunca”, como lembraria Drummond, sempre tão sensível ao que vive e sofre a sociedade.

Ricardo Viveiros

Jornalista, professor e escritor, é doutor em educação, arte e história da cultura; autor, entre outros, de “A Vila que Descobriu o Brasil” (Geração), “Justiça Seja Feita” (Sesi-SP) e “Memórias de um Tempo Obscuro” (Contexto)

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