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Travessia

Testada diante de um presidente hostil, arquitetura democrática saiu-se bem

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Ao lado de sua mulher, Michelle, Jair Bolsonaro toma posse na Presidência - Pedro Ladeira - 1.jan.19/Folhapress

Euforia, revolta, depressão, cruzada anticorrupção, impeachment, surpresa nas urnas. Desde o final da primeira década deste século, o Brasil navega mares agitados. 

Na conclusão dessa travessia terá se consolidado, provavelmente, outra normalidade no modo como as forças da sociedade partilham e acessam o poder de Estado —mas não uma nova institucionalidade. 

Tem sido notável a resistência da arquitetura constitucional aos múltiplos choques, o que foi realçado em 2019. Pela primeira vez ela teve testada a sua integridade diante de um presidente hostil aos valores democráticos do pacto de 1988 —e saiu-se bem.

Cabeceios antissistema do Planalto acabaram em recuo ou derrota. O uso da Presidência para fins pessoais só andou onde é maior a alçada do Executivo, como no Ibama, ainda assim em forte atrito com a burocracia, órgãos de controle e setores da sociedade. 

Bravatas autoritárias da ala alucinada do governismo foram amplamente rechaçadas e levaram a um processo no conselho de ética da Câmara. O desplante do presidente Jair Bolsonaro de cogitar o filho como embaixador morreu diante da firmeza do Senado. 

O medo do impeachment parece acossar o mandatário, contribuindo para as constantes reviravoltas em suas intenções e medidas, o que não deixa de ser uma prova da ubiquidade dos mecanismos de prevenção dos abusos de poder. 

Outra hipótese reforçada pelo desempenho da política em 2019 foi a aguda carência de apoio —no Congresso e na sociedade— à agenda neoconservadora acalentada pelo bolsonarismo desde a campanha. O Legislativo enterrou itens mais salientes, como a licença para policiais matarem em serviço. 

O fel da intolerância escorre por ramificações em que o Executivo não tem de negociar com parlamentares e está menos exposto a controle externo, como cultura, assistência social e Itamaraty, onde se imprime uma linha estrambótica de política externa. 

O maior estrago é induzir atitudes incivilizadas em cidadãos e agentes do Estado. Quando o poder questiona e flexibiliza normas, esvazia agências, indulta policiais criminosos e desdenha minorias, está incentivando a brutalidade. 

Apesar de esses pontos merecerem grande atenção e crítica, a fotografia mais geral do primeiro quarto do mandato de Jair Bolsonaro evidenciou um governo relativamente fraco e impopular, na comparação com os seus antecessores. 

Parte da fraqueza decorre de fatores históricos, pois o superpoder que a Carta de início conferiu à Presidência da República vêm sendo desbastado há décadas.

O governo, no entanto, responde ele mesmo pela maior parcela da sua esqualidez relativa. A começar do chefe de Estado, assombra a quantidade de quadros de baixo nível técnico e político alçados a posições de alto impacto. 

A área econômica desponta como exceção nas habilidades técnicas, mas não nas políticas. A má articulação e a fanfarronice afetam também esse setor. A reforma da Previdência e o avanço na do saneamento básico se deveram mais ao esforço do Congresso. 

Também concorre para a pouca força relativa do governo a sua vocação minoritária. A eleição de Bolsonaro foi um acidente produzido na encruzilhada do repúdio às forças partidárias que lideravam a disputa pelo poder nacional. 

Esse veto elevou à Presidência um político periférico, especializado em atender ao corporativismo de policiais e militares e a denominações evangélicas. No palácio, Bolsonaro tinha a opção de tentar ampliar o consenso sobre sua gestão, mas não o fez. 

Continuou mergulhado nas pautas miúdas, privilegiando os nichos da sua clientela de deputado. Nem sequer no PSL logrou garantir apoio mínimo. Abandonou a legenda para fundar o que por ora não passa de mais um empreendimento familiar. 

Naufragou a sua teoria política das bancadas temáticas, pela qual pretendia substituir a costura de maiorias estáveis no Congresso. Nenhum presidente em seu primeiro ano de mandato teve tantas iniciativas legislativas frustradas. 

A aceleração da atividade econômica surge agora como o maior, se não for o único, elemento para salvar o mandato da mediocridade. 

Que venha o crescimento, com bons empregos e queda de desigualdades. Mas que ninguém no governo se iluda com tomá-lo de pretexto para aventuras autoritárias.

editoriais@grupofolha.com.br

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