Descrição de chapéu
Carlos Adriano

A alegoria do Inmetro

E se passarmos da medida na perda do decoro?

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A recente medida do governo federal em “implodir” o Inmetro é uma desafortunada e desaforada alegoria sobre a desmedida dos desmandos que assolam o Brasil em escala quântica (se na seara terraplanista não vigora o padrão geométrico, não faz mal usar a ficção exponencial da quarta dimensão).

O Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) é uma autarquia federal, vinculada ao Ministério da Economia. Dentre suas atribuições estão “executar políticas nacionais de metrologia; fiscalizar a observância de normas técnicas e legais, no que se refere a métodos e instrumentos de medição, e produtos pré-medidos; manter os padrões das unidades de medida no país, visando a qualidade de bens e serviços”.

O cineasta Carlos Adriano na pré-estreia do filme 'Homem Comum' - Bruno Poletti - 8.set.15/Folhapress

Tudo o que compramos e é mesurável tem que estar dentro da régua do Inmetro. Se pago um litro de combustível, é a quantia que deve abastecer o carro (se não for de bomba adulterada). No capitalismo, tudo tem preço —medido por duração, tamanho e peso.

No último sábado (22), passando o feriado de Carnaval em Guarujá (SP), o presidente Jair Bolsonaro fez uma “live” de seu perfil numa rede social. À porta do supermercado, anunciou a "implosão" do Inmetro e a demissão da diretoria, alegando que a portaria sobre a troca de tacógrafos prejudicaria os taxistas.

“Implodi o Inmetro.” E explicou: “Não estou acusando ninguém de fazer nada errado. Foram demitidos mais pelo excesso de zelo”. Assim, decidiu “cortar a cabeça de todo mundo”.

Servidores da Ancine (Agência Nacional do Cinema) já se viram como figurantes de “Cabeças Cortadas” (1970), de Glauber Rocha. Embora o Brasil não canse de catar os cacos refratários de seu transe de espelhos anamórficos, não estamos em nenhum país das maravilhas, às voltas com a Rainha de Copas, cuja tara autoritária de curto pavio vive recorrendo à ordem da decapitação.

Num sentido mais imediato, até por conta da ressaca do Carnaval politizado —o enredo da Mangueira, a proibição do Bloco da Cracolândiabatidas em foliões país afora—, o leitor pode usar a chave de Momo para a frase que abre as alas deste artigo.

São férteis as noções de alegoria e história enunciadas por Auerbach (“Mimesis”) e Walter Benjamin (“As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas”).

Em seu livro de cinema “Alegorias do Subdesenvolvimento”, Ismail Xavier ensina as formas alegóricas da arte contemporânea. Caracterizam “formas de construção e de montagem” da imagem tomada como modo de representação em crise. A “estratégia alegórica é abordada em dois aspectos: o da descrição da textura e estrutura da obra e o da discussão da postura do artista diante da sociedade”.

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O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta populares na entrada do Forte dos Andradas, em Guarujá, no litoral sul de São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress


Segundo Xavier, seguindo Angus Fletcher, “o traço próprio à alegoria é o caráter descontínuo da organização das imagens”, que dispõe o espectador “numa postura analítica em que qualquer enunciado fragmentado assume a aparência de mensagem cifrada que solicita o deciframento”. Trata-se de rico instrumento de medição do discurso.

O ódio sistêmico e sistemático —a índios, pobres, pretos, gays, mulheres, intelectuais, artistas, professores e jornalistas— forma convenções de linguagem sob interpretação. E dá a medida das perdas da noção de medida e decoro. E se passarmos das medidas?

Filme terminal de Pasolini, “Salò” (1975) encena um teatro de aberrações desmedidas, ao transpor as transgressões de Sade para uma república fascista na Itália do fim da 2ª Guerra Mundial. Intelectual e artista, Pasolini era militante e inconveniente. Atirava à direita e à esquerda, denunciando o consumismo pornográfico do capitalismo indutor de misérias.

Ainda segue inexplicado seu brutal assassinato por um michê na praia de Óstia, em 1975. Transplantando elementos de outros tempos e latitudes, a chave alegórica poderia dar mais certeza à atriz Laura Betti: Pasolini foi morto por fascismo homofóbico. Queima de arquivo às avessas?

Talvez a alegoria do Inmetro não exija tanto para ser decifrada (nem sob a bocarra da Esfinge), mas põe o (e)leitor-cidadão em posição de sentido (ops!), para atentar aos lapsos do enunciado descontínuo. Sofista do século 5 a.C., Protágoras disse que “o homem é a medida de todas as coisas”. E quando não se perde a medida por catástrofe natural, mas por humano decreto?  Decerto, a desmedida trai o desumano de todas as coisas. ​

Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

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