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Philip Yang

Câmara Municipal, câmbio?!

Um ET ficaria assombrado ao se deparar com São Paulo alagada

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Um alienígena que pousasse em São Paulo se espantaria com as enchentes que assolaram 800 pontos da cidade. Se ele se aproximasse da Vila Leopoldina, vizinha da USP, da Ceagesp e do parque Villa-Lobos (zona oeste), talvez sua perplexidade aumentasse. Ele veria ali que mais de 800 famílias de baixa renda tiveram suas moradias invadidas pelas águas até a altura da cintura.

Se fosse dotado de um sentimento próximo ao que chamamos de humanidade, a tal criatura ficaria surpresa de saber que há uma solução pronta para o problema: um projeto de lei, o chamado PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Vila Leopoldina-Villa-Lobos. A surpresa do nosso ET passaria agora para o estarrecimento no momento em que tomasse ciência de que o projeto, que já cumpriu todos os ritos legais, "não anda" por um problema conhecido entre os terráqueos como "travamento de pauta" na Câmara Municipal. Isso acontece quando os vereadores por alguma razão não consideram o projeto suficientemente importante para colocá-lo em votação. 

Philip Yang, fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole) - Reinaldo Canato - 22.jan.19/Folhapress

O alienígena imaginário agora de fato pousa no bairro e fica sabendo que está prevista a criação de habitações para todas as famílias atingidas no próprio bairro, como parte de um programa de urbanização cuidadosamente planejado por representantes do governo, do mercado e da sociedade civil, num processo de debates que se estendeu por três anos, perpassando a gestão de três diferentes prefeitos (Fernando Haddad, João Doria e Bruno Covas).

O extraterrestre é tomado, agora, por indignação: "Se o Poder Executivo está de acordo, o mercado está disposto a pagar esta conta e a comunidade apoia, por que então o Legislativo não examina o projeto?".

Chamado a explicar o quadro geral ante o transtorno da criatura, explico a ela que há uma convergência histórica rara entre: a - o amplo apoio da comunidade que ali reside há 50 anos; b - a existência de uma legislação moderna, conhecida como PIU, que São Paulo elaborou graças ao conhecimento acumulado ao longo de décadas de experiências regulatórias —da Carta de Embu (1976) ao Estatuto das Cidades (2001), passando por planos diretores e zoneamentos; e c - um proprietário de uma grande gleba (a Votorantim), que confirmou interesse em antecipar o investimento necessário (algo incomum no mercado) para a construção das unidades habitacionais (a maior parte das quais dentro do seu próprio terreno).

Minha explicação só o deixa mais perturbado. "Se já demorou tanto, se o projeto gera uma cidade moderna de uso misto e ainda acomoda a população mais vulnerável, por que não o votam, a favor ou contra, de uma vez por todas?”, questiona-me o alienígena, desta vez visivelmente revoltado.

Procuro mascarar o meu próprio desconsolo. "Olha, pode ser que eles tenham outras prioridades", digo a ele. Forçando um sorriso, sigo então dizendo que "talvez grupos de pressão estejam atuando contra o projeto, em função de algum interesse mais particularista". “Seria mais cômodo para o legislador”, continuo explicando, “não colocar o projeto em pauta do que enfrentar a contrariedade de certos eleitores". A expressão agora é de descrença absoluta. O ser de outro planeta resolve, então, conversar diretamente com as lideranças da Câmara.

Tal como na sessão do filme "E.T. - O Extraterrestre", que assisti quando criança, desenvolvo uma relação de cumplicidade com meu interlocutor e torço para que ele possa reacender a humanidade dos legisladores.

Se votarem contra, teremos famílias condenadas à precariedade. A Votorantim, hoje um agente privado comprometido com o ideal de uma cidade melhor, provavelmente usará o seu valioso terreno para um empreendimento convencional, de torres cercadas por muros, sem qualquer contrapartida para a coletividade. E a legislação do PIU, conquista civilizatória, cairá em desuso, o que nos privará de uma ferramenta fundamental de transformação democrática do território.

Caso votem a favor, guardarei uma ponta de esperança de que temos algum futuro como cidade.

Vai, ET! Porque nós, humanos, já fizemos tudo o que podíamos…

P.S.: Torço também, amigo alienígena, que você sugira à Câmara que paute o PIU Vila Leopoldina junto com o PIU Arco Pinheiros. São complementares para o encaminhamento das questões de macrodrenagem do bairro e da região.

Philip Yang

Mestre em administração pública pela Universidade Harvard e fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole)

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