Descrição de chapéu
Jairo Malta

O bonde das empregadas

Senhor ministro, domésticas não vão nem ao Parque da Mônica

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"Doméstica ia para a Disney com dólar mais barato", disse o ministro Paulo Guedes, "uma festa danada". Esse tipo de afirmação deveria nos chocar —por nós, me refiro a nós, pretos, pobres, periféricos—, mas isso não acontece mais. 

É muito claro que, para os elitizados, estar em um lugar onde todos podem ter acesso, e não apenas eles, faz com que se sintam menos exclusivos. Afinal, é para isso que eles gastam tanto com roupas, carros, restaurantes, viagens —e também, aparentemente, parques de diversão: para se manterem em uma posição "superior", almejada por grande parte da sociedade.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante entrevista coletiva, em Brasília - Pedro Ladeira - 18.nov.19/Folhapress

Talvez, nesse momento, você se pergunte: "Ok, qual a novidade nisso?". Nenhuma. Paulo Guedes está aí para provar justamente isso.

Apesar de não ser novidade, se você faz parte do "nós" ao qual me referi no início do texto, sabe que ainda dói bastante não poder circular em alguns ambientes sem ser julgado por tudo. Roupa, cabelo, barba, pele —ou se coloquei ou não a mão no bolso. Será que pareço estar roubando algo? Será que serei barrado na porta, antes de sair? Ou precisarei fazer um vídeo para me expor na internet falando mal de algum lugar ao qual acham que não pertenço e fui xingado de preto, pobre e favelado?

Talvez tudo isso que estou listando seja "mimimi" para você, mas posso contar algo que aconteceu comigo recentemente.

Fui a um lugar chamado Bar de Cima, na rua Oscar Freire, nos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Bom, realmente não é um lugar que eu frequentaria normalmente, mas era uma festa de pessoas que eu conheço e, por isso, ingenuamente, achei que o "rolê" seria diferente.

Enquanto ainda estava no Uber, parando em frente ao bar, vi três homens trajados no estilo "mercado financeiro": brancos, altos e de terno. Logo que meu carro estacionou, o trio parou de falar e ficou olhando para nós: dois pretos —eu e o motorista, um baiano que estava bem preocupado com o Carnaval que vai passar em São Paulo— em um Fiat Uno branco. Estacionamos um pouco mais à frente para que eles não imaginassem que éramos um perigo. 

Saí do carro, entrei no local, falei com amigos. Os próximos acontecimentos duraram cerca de 15 minutos: subi até o bar, conversei muito brevemente com um amigo e, enquanto descia as escadas, um cara também trajado de mercado financeiro deu um tapa nas minhas costas, a ponto de levemente me desequilibrar.

Após dar o tapa, ele disse: "Calma, ainda não são as chibatadas". Apenas isso. E desceu, rindo, ao lado de duas meninas, também brancas, que riram muito e diziam, uma para a outra: "Você viu o que ele disse? Ainda não são as chibatadas". Mais risos.

Minha reação poderia ter sido ter chamado a polícia? Sim, poderia. Eu poderia ter ido lá e quebrado a cara dele? Também poderia. Mas não: a minha reação foi apenas ficar paralisado, passar mal e começar a chorar a ponto de pedir um Uber correndo para não me humilhar ainda mais.

Tudo isso só me mostrou que realmente “nós” não pertencemos a esses lugares. Não importa quanto dinheiro você tenha, quantas faculdades, pós ou mestrados tenha feito —ou quantos Foucault, Kant ou Maquiavel tenha lido ou saiba citar. Você nunca poderá circular por alguns lugares porque eles não foram feitos para pessoas como você.

O que deveria ser uma reflexão a partir da frase do ministro Paulo Guedes não é só o preconceito dele com a classe das domésticas —que provavelmente são as que diariamente lavam as cuecas sujas com as merdas que dele saem—, mas sim como ele não sabe nada sobre o quão distante o sonho de ir para a Disney é para elas.

Acho, e espero estar muito errado, que a maioria das domésticas que puderam ir para lugares assim foram porque precisavam segurar os filhos dos ricos quando eles choravam, cagavam ou vomitavam.

Senhor ministro, as domésticas não têm acesso nem ao Parque da Mônica, que dirá a Disney. Ou o senhor acha que, com a atual economia, a entrada de R$ 99 para adultos e R$ 104 para crianças —isso no Parque da Mônica, viu?— é viável para pais com um, dois, três, dez filhos?

Não temos acesso a nada e, quando criamos algum espaço nosso, que podemos extravasar o que tem dentro de nós, somos assassinados por gostar de coisas que pessoas vestidas de mercado financeiro acham sujas, barulhentas ou feias. E, para piorar, a cereja do bolo, somos lembrados ainda que a “mamata das empregadas na Disney” acabou.

Na minha família, a maioria das mulheres são ou foram domésticas. E nunca, nunca fomos para a Disney. E sabe quando iremos, ministro? Nunca. Talvez porque somos encarados como parasitas, e a elite tenha medo que "nós" bebamos seus vinhos, festejemos suas festas e passemos doenças para seus filhos  —aquelas que apenas “nós”, da nossa classe, temos, né?

Resta-nos seguir o que Mano Brown falou: tentar ser duas vezes melhor para "nós" podermos ficar três vezes atrás.

Jairo Malta

Designer, fotógrafo e repórter na Folha de S.Paulo. É autor do blog Sons da Perifa.

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