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Esper Kallás

Em solo virgem

Aos poucos, os infectados desenvolvem defesa, mas fica a devastação

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O historiador norte-americano Alfred W. Crosby foi um observador de pássaros e apreciador de jazz, mas principalmente um pesquisador reconhecido por seus estudos em história, geografia, biologia e medicina. Para muitos, adicionou a biologia no processo de exploração humana, com vários estudos e observações dos movimentos de conquista europeus. Entre suas diferentes contribuições, Crosby conseguiu entender o impacto da pandemia de gripe espanhola de 1918. Entretanto, ele deixou sua marca na história da ciência pela explicação de como algumas epidemias conseguem ser tão devastadoras.

Seu conceito se fundamenta na entrada de um germe completamente desconhecido por uma população e capaz de causar doença. Talvez um dos melhores exemplos tenha sido a conquista das Américas pelos europeus nos séculos 15 e 16. Embora com poder militar muito superior às populações americanas, o que mais matou os locais foram doenças que já eram comuns na Europa, como varíola, tifo e sarampo. Outros exemplos são a introdução da peste bubônica por mongóis na Europa e no Oriente Médio no século 14 ou, ainda mais antigo, a varíola pelos romanos, nas mesmas regiões, no século 2.

O infectologista Esper Kallas em entrevista para a TV Folha sobre o coronavírus. Reprodução de vídeo da TV Folha. Foto: Jasmin Endo Tran/Folhapress
O infectologista e professor da USP Esper Kallás em entrevista para a TV Folha - Jasmin Endo Tran - 15.mar.20/Folhapress

Todos nós temos um sistema de defesa que tenta nos proteger contra germes desconhecidos, inclusive vírus. É denominado de sistema imune. Uma das chaves de seu funcionamento é ensinar nossas células a produzir substâncias protetoras (os anticorpos são o melhor exemplo) e a destruir diretamente alguns desses germes. É um processo construído ao longo de nossa vida, pois vamos guardando na memória imune as melhores armas contra cada agressor. Isso significa que cada um de nós pode participar da proteção coletiva, servindo de obstáculo de transmissão para os demais.

O novo coronavírus é um exemplo, que encontra toda a população desprovida de defesa. É o que Crosby denominou de epidemia em solo virgem. Sem obstáculo, sua transmissão é muito rápida, afetando muitas pessoas ao mesmo tempo, sequer impedido por proteções parciais, que poderiam ter sido construídas pelo contato de germes parecidos. Seu ineditismo faz o coronavírus completamente desconhecido do sistema imune dos seres humanos. Nosso sistema imune precisará de tempo para nos proteger.

A pandemia de Covid-19, portanto, é reflexo dessa fragilidade. Uma quantidade grande de pessoas será infectada. Aos poucos, os que tiveram contato com o coronavírus vão desenvolvendo defesa, ficando imunes. A pandemia vai perdendo força. Mas fica uma devastação. Alguns dos mais velhos e com problemas de saúde sofrerão o impacto.

Ao estudar a resposta ao novo coronavírus, podemos encontrar soluções, mas o tempo é curto. Com o ciclo de poucos meses até perder a força, precisamos encontrar formas de tratar nossos doentes. São vários remédios em estudo. Não podemos perder tempo. Outra forma seria criar meios de prevenir. Quer seja a infecção pelo germe, quer sejam as consequências da Covid-19. Aqui, a saída é ensinar o nosso sistema imune a combatê-lo. Seja com uma vacina ou dando as armas que o sistema imune produz para lutar contra o vírus (um anticorpo produzido em laboratório).

O conhecimento da resposta imune é elemento fundamental. Como o vírus entra no organismo? Quais células ele infecta? Qual é o mecanismo dos danos? Por que os idosos e as pessoas com outras doenças sofrem tanto com a Covid-19? As respostas serão fundamentais para traçar nossa melhor estratégia e mitigar o impacto da pandemia.

O solo de propagação do vírus está virgem. Mas, diferentemente dos séculos 2 e 14, ou em 1918, temos a arma da ciência ao nosso lado. Com ela, podemos entrar na batalha com mais confiança de encontrar soluções. A sociedade pode participar deste combate. Na linha de frente estão grupos de pesquisa como o Instituto de Investigação em lmunologia, da Faculdade de Medicina da USP, que conta com o fundamental apoio da Fapesp (agência de fomento à pesquisa do governo estadual de São Paulo).

Que as soluções venham a tempo.

Esper Kallás

Médico infectologista, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e colunista da Folha

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