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Iversson Natan

Sinceramente, que fique a pergunta na sua mente

Favelas? Nunca acordaram com esgoto nas canelas

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Cuidado ao levar seu dedo até a tecla CONFIRMA, pois pode ser perigoso esse seu pequeno deslize.

Tu não sabe o peso disso, chega até a causar D E S L I Z A M E N T O de terra, deixando pessoas muita vezes sem teto. E os sem-afeto continuam jogando lixo na rua.

Escuta, essa culpa também é sua, não faz o básico; acaba deixando pessoas carentes de cesta básica.

Que voltemos pra prática.

10 de fevereiro de 2020. Era 5h50. Só mais um dia de trampo; só mais um dia difícil. Se aqui chove, já fica inacessível.

O poeta Iversson Natan, 18, vítima das enchentes que atingiram a cidade de São Paulo em 10 de fevereiro - Reinaldo Canato - 13.nov.19/Folhapress

Mas hoje, hoje “cê é loco”, quem viveu, viveu. Ou melhor: tem gente que está sobrevivendo, pois ainda tem lixo boiando. E ainda está chovendo.

Favela do Nove. Os prédios. E a linha. Sabe do que estou dizendo. “Eu perdi tudo”, diz uma mulher puxando a água do barraco. “Pifou meu freezer”, diz um comerciante intrigado.

Já eu, há seis anos, vi meu barraco sendo consumido pelo fogo.

Hoje, eu e meu irmão vimos o barraco sendo consumido pela água.

Não foi só eu que sofri. As duas favelas a minha volta também choram.

“Mas e agora?” Também não sei responder. Sofrimentos diários.

Estamos acostumados, mas no fim da noite temos onde deitar a cabeça. ”Mas e agora?”

Vi gente perdendo isso na minha frente, sinceramente. Que fique a pergunta na sua mente.

Gente que agora sem cama clama por melhora. De tanto chorar nem respira direito. Fui ajudar um amigo, passei no beco. Vi uma mulher xingando o prefeito. “Mas e agora?”

Olimpíada real você só vê aqui. Hoje vi o que era natação de fato. Levantamento de peso? Eu sou campeão.

“Tem que deixar os móveis 'atrepado'”, minha mãe disse. Braçadas, pique de canoagem com o rodo na mão. Porque a água não pode entrar e molhar mais um colchão.

Lágrimas se misturam com a água de quem chora e sabe que a vida daqui pra frente será mais difícil.

Minha mãe olha pra mim e fala: “De novo isso?”. Outro recomeço.

“Eu não mereço. Nem terminei de pagar as dívidas.” O sofá tão sonhado, que ela comprou no finalzinho do ano passado, agora se encontra suspenso em duas cadeiras. Ensopado.

Olho pra ela e não sei o que responder. Só queria saber o que dizer.

Mas tenho força pra escrever. E, do meu jeito, desabafar. Sei lá.

Essa fita tem que mudar, “tá ligado”? Pessoal da favela sofrendo, e a TV falando da marginal parada.

Pelo amor de Deus.

Enquanto eu me pergunto: E a vida, será que volta a andar? Será que o pessoal ainda tem força pra continuar? Do zero. Vejo a “mó” rapaziada de lero-lero.

Grupo de educadores e pais se mobiliza para arrecadar doações para atingidos por chuva em SP
Grupo se mobiliza para levar doações para atingidos por chuva em SP - 10.fev.20/Divulgação

E não sei o que andam falando sobre as favelas. Falam “pacarai” porque nunca acordaram com fogo nas telhas e água de esgoto nas canelas. Para as quebradas, eu desejo força. Somos fortes. Agradeço também a cada pessoa que me ofereceu ajuda.

Sou eternamente grato. Bagulho é “loco”, braço! A água tá batendo no peito lá na Atlas. Fiz esse texto com a água na altura dos joelhos.

Não sei até quando vou ver água nos olhos desse povo. Sinto a sensação de ser tudo de novo.

Só força.

Iversson Natan

Poeta e assistente de biblioteca de 19 anos, é morador da favela do Nove (zona oeste de São Paulo), que ficou alagada após as enchentes de 10 de fevereiro que atingiram a capital paulista

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