Scrope Davies, amigo de Lord Byron, referindo-se à insanidade, disse que: “A Babilônia, no auge de sua desolação, não foi tão horrível quanto uma mente humana em ruínas”. Assim é o momento atual, em que a cautela deveria ser a ordem do dia, como bem disse Angela Merkel. Qualquer coisa fora disso é perversa e, provavelmente, levará a uma catástrofe gigantesca. Mas cautela e bom senso têm sido material escasso aqui.
Se o ano de 2019 iniciou num script ideológico polarizado, o ano de 2020 partiu de uma tensão adicional do Executivo com o Legislativo, por conta do Orçamento impositivo. Com poucos resultados concretos e a rejeição da agenda de costumes, o Executivo parece sugerir que a sua pauta não poderia ser "in totum" subordinada à calibragem dos demais Poderes. Vê no que chama de “antiga política” amarras para a sua agenda.
Acelerando essa dinâmica, uma máquina de desinformação digital constrói narrativas usando a falta de resultados e, sobretudo, culpando o Legislativo, o Judiciário e o espaço de ajustes tectônicos da própria política ao ecoar ataques ao modelo de presidencialismo de coalizão. É evidente que no espaço virtual o contrário também ocorre, ainda que de forma certamente mais orgânica. Desvia-se no conjunto o foco de responsabilidade de resolução dos problemas, atribuindo-se a culpa a um dos Poderes pelos demais, rotativamente, dependendo do ponto de vista dos atores centrais a cada campo.
Frente a isso está, desejo inconfesso, o anseio do governo por uma versão local do “unitary executive theory”, ou seja, um Executivo hipertrofiado em relação aos outros Poderes, que supostamente traria um resultado mais eficaz. É um conceito importado de um controverso e tenso debate nos Estados Unidos e que afeta, se aplicado, a estrutura de "check and balance" entre Poderes. Entretanto, se já disruptivo nos EUA, no Brasil se tornaria motor de crise pela inexistência de uma cultura de anteparos comparável a construída pelos “pais fundadores” da democracia americana. Viramos março aí.
Nesse ponto, a Covid-19 mudou a prioridade das coisas. Ao subestimar a epidemia, a aprovação do presidente se fragilizou e, em resposta, ele investiu na polarização por ações e declarações públicas polêmicas. A temperatura subiu e, paradoxalmente, a importante máquina do SUS terminou criticada em sua ação federalista e de alinhamento à OMS. Os demais Poderes se contrapuseram com vigor, e a pauta federalista se tencionou. O medo e o vírus, contudo, não fazem distinções, e os fatos se impõem.
A crise começa a cobrar seu preço político e econômico pela lentidão da resposta do Estado. Isso acontece apesar das milhares de cenas e alertas anteriores em tempo real e em escala global, o que, dentre outras coisas, permite comparar o comportamento de distintas lideranças e países. O absurdo daqui se torna óbvio.
Mas há, também reações, auspiciosas. Um conjunto que soma decisões do STF, garantindo autonomia federativa sobre circulação e confinamento, a ação do Legislativo, aprovando medidas do Executivo focadas na crise, ainda que recalibradas, e a objetividade de governadores, em ação proativa de proteção. Tudo isso alia-se à discussão nas redes e na mídia, que, no conjunto, pressionam por resolutividade. Essa é uma lição que, observo, aponta para um novo normal de vitalidade cívica.
Este momento dramático ameaça de forma invulgar a estabilidade nacional. Haverá um caudal de dor. Narrativas para tentar desviar culpas ou buscar uma agenda unitária ocorrerão paralelamente. A questão do impacto na economia é real, mas, sem saúde, o dano à economia será ainda maior.
Lidamos simultaneamente com a crise sanitária e a política. Infelizmente, divididos, adentramos na hora mais escura. Porém, cautelosos e com um mínimo de bom senso, poderemos sair melhores do que a crise hoje sinaliza. O país pode ser maior que ela. Depende de nós.
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