Descrição de chapéu
Marcos Fernandes G. da Silva

A pseudociência de Helio Beltrão

Modelos são irreais por definição, mas sem eles não temos como nos informar cientificamente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Helio Beltrão, colunista desta Folha, publicou recentemente um artigo defendendo a hidroxicloroquina. Os erros de metodologia científica contidos em sua argumentação foram apontados numa análise posterior, publicada no jornal.

Contudo, Beltrão é persistente. Na coluna de quarta-feira passada (22) volta a errar, argumentando que a proposta de fim gradual do isolamento do governador João Doria (PSDB) é baseada em pseudociência.

O professor de economia Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, da FGV/Eaesp (Fundação Getulio Vargas - Escola de Administração de Empresas de São Paulo) - Keiny Andrade - 11.abr.17/Folhapress

O colunista coloca que o plano teria nascido atrasado, pois “os óbitos de Covid-19 no Brasil apontam possivelmente para total inferior a 10 mil, ante mais de 80 mil de gripe ou pneumonia durante o ano de 2018, sendo 24 mil apenas em São Paulo”. O problema do novo coronavírus não é a sua mortalidade em si, mas a velocidade com a qual se espalha e os picos de incidência, que podem comprometer a infraestrutura hospitalar, que não é somente física, mas humana.

Depois, Beltrão afirma que o governador sabe que o isolamento não pode ser feito sem “uma sólida base científica. (...) Tal base faltou ao infame paper do Imperial College”. Primeiro, e sem comentar o termo “infame”, não é um "paper" em si, mas uma pesquisa, que é continuamente revisada. Segundo, creio que o articulista não entendeu como ele funciona.

Serei didático. O comportamento dessa epidemia assemelha-se ao de uma dívida. Vou usar um exemplo de aula 01 de matemática financeira. Considere uma pessoa endividada no rotativo do cartão. A dívida não para de crescer a uma taxa, a de juro. Pior, imagine que esta taxa aumenta. Entra o 13º salário e o endividado alivia parte da dívida que, logo depois, volta crescer sem parar: ela passou do ponto crítico, como falamos. Quando se percebe que é tarde demais, já é tarde demais. E se a taxa de juro muda um pouco, a trajetória da dívida muda bastante.

Mas e se o endividado não sabe qual é a taxa de juros? Saindo da metáfora, a taxa aqui pode ser medida pelo número de infectados (não sabemos), pelo número de ingressantes no sistema de saúde e pelo número de mortos. O modelo do Imperial College tem suas limitações, exatamente pois pequenas variações nos dados geram grandes alterações nos resultados.

O fundo dos mares foi mapeado por sonares, de modo que barcos podem navegar com segurança. No passado, navegadores precisavam usar cordas com um peso amarrado na ponta para, devagar e com cuidado, medir a profundidade e evitar um acidente. O modelo que temos hoje é esta corda, e não o sonar. Modelos são irreais por definição, mas sem eles não temos como nos informar cientificamente, como Jorge Luiz Borges nos ensina em seu "Del Rigor em La Ciencia".

Como esta Folha aponta em editorial, São Paulo aparentemente está no caminho correto (ajustes devem ser feitos). Contudo, não me interessa aqui defender o governador, mas apenas o conhecimento científico, que tem como mérito colocar-se a priori como limitado.

Marcos Fernandes G. da Silva

Professor de economia da FGV/Eaesp e pesquisador do FGV/Ethics

TENDÊNCIAS / DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.