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Sergio Spalter

Como preparar alguém para morrer sozinho

Nosso corpo não é, definitivamente, o limite do nosso ser

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Sergio Spalter


Nós nunca estamos sozinhos. Os limites do nosso corpo não são os limites do nosso ser. Quando me sento na beira de um rio e olho para a outra margem, estou lá.

Ficamos muito acostumados a entender a vida sob seus limites físicos. Isso aconteceu porque, na história humana, a certeza dos sentidos se fez mais e mais necessária em um mundo cheio de dogmas e conhecimentos questionáveis.

O pediatra Sergio Spalter em debate sobre obesidade infantil - Keiny Andrade - 28.mar.17/Folhapress

Aprofundamo-nos na matéria, no que era medível e palpável. Mas, agora, até isso nos escapa à medida que vamos em direção ao mundo da física quântica.

Nossas certezas, porém, ficaram presas aos limites físicos, que são extrapolados em uma mensagem ao vivo que recebo, do outro lado do mundo, em meu computador. É nos encontros virtuais que eu volto a questionar onde eu estou, quando estou conversando com uma outra pessoa.

Precisamos crer em algo, não apenas por necessidade, mas porque nossa compreensão da vida tem de ser ampliada. O que conhecemos hoje como verdade é pouco. Não dá conta de uma enormidade de mistérios reais. A tecnologia necessária nos engana. É ela que, passadas centenas de anos, nos faz acreditar agora em uma verdade reduzida.

O excesso de crenças pessoais não acontece só porque não temos acesso às últimas novidades da ciência. Acontece porque temos mais e mais experiências não palpáveis, justamente isso que a ciência ainda não conseguiu resolver.

Resolver a compreensão do mundo invisível significa mudar de perspectiva. Significa entender que o invisível é real.

Quando me comunico com outra pessoa do outro lado do mundo, ou de dentro de uma unidade hospitalar, não é só a tecnologia que me permite isso. É o nosso ser que está lá, sofrendo junto com o outro, compartilhando seus momentos difíceis com toda a empatia possível.

Morrer sozinho é a opção que a ciência nos coloca hoje com direito a velórios abandonados. Mas não é só isso que temos, porque o que está partindo é um corpo sem vida. Sem a vida que continua, de alguma forma, existindo.

Em epidemias anteriores, muitos ficaram sem poder abraçar seus familiares na hora da passagem e nos rituais de luto. As orações passaram a ser feitas a distância, em sintonia com os que estavam isolados. Uma solução encontrada nas epidemias da África foi plantar flores e árvores. Ver a planta crescer traz uma lembrança alegre daquele que deixou seu corpo.

Mas não sabemos o que nos acontece na hora da morte. Entendemos bem o que acontece com o corpo. Mas não sabemos onde está a pessoa que nos acompanhou por uma vida inteira. Podemos nos afastar uns dos outros fisicamente, mas nosso corpo não é, definitivamente, o limite do nosso ser.

Mais do que nunca é urgente começarmos a entender e pesquisar sobre esse mundo invisível que todos experienciamos no dia a dia. Dar a ele o direito de realidade. Não nos assustarmos com a palavra espiritual, mas acordarmos com todo o nosso conhecimento para seu entendimento.

Sergio Spalter

Pediatra, é doutor em imunologia pela USP

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