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Eduardo Serur

Direito pós-pandêmico

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Soluções virão através do Estado de Direito, sob perspectiva da isonomia e da justiça social

Eduardo Serur

Se projeções, previsões e estimativas já são tarefas desafiadoras em tempos normais —pré-Covid 19, bem dito—, elas se tornam, no contexto atual, algo como uma abstração, um voluntarismo desprovido de qualquer método. Nada ou quase nada sabemos sobre o que estamos vivendo, o que dizer do mundo pós- pandêmico?

Ainda que assim seja ou possa ser, do ponto de vista histórico-evolutivo nos comportamos de maneira prospectiva: olhamos para o futuro para dar significado ao presente, sobretudo quando ele é desesperador.

Eduardo Serur - Sócio-fundador do escritório Serur Advogados, é mestre em direito comercial pela UFPE e doutor pela Universidade de Lisboa
O advogado Eduardo Serur, sócio-fundador do escritório Serur Advogados - Divulgação

No direito, estamos como em quase todos os outros campos do conhecimento humano: atordoados com esse estado de coisas, tentando entender como estruturas ancestrais podem ser capazes de responder a demandas tão contemporâneas e imprevisíveis.

Olhar somente para o presente e ficar buscando soluções para ele é importante e necessário. Mas devemos refletir sobre como sairemos de onde estamos e decidir para onde queremos ir.

Se as respostas jurídicas em decorrência do coronavírus não estão sendo alcançadas ou estão sendo insatisfatórias, temos que aproveitar o momento para reconstruir os modelos tradicionais e prepará-los para a fase pós-pandêmica, com suas novas conformidades. Como seremos e que respostas esperamos do direito é também um desafio do presente.

No campo das liberdades civis vivemos uma balbúrdia: o estado pode ou deve restringir a circulação de pessoas? Pode forçá-las a usar máscaras em ambientes públicos? Fechar comércio? Deve compensar as perdas das empresas com medidas econômicas, ou isso seria mera liberalidade? Se pode e deve, quem tem esse poder? A União, os estados ou os municípios? Ou seriam todos, cada qual um pouquinho? E certas medidas emergenciais estão dentro das atribuições do presidente, como chefe do Executivo, ou são clássicas iniciativas do Legislativo? Todas as respostas estão sendo construídas enquanto vivemos a crise num processo paralelo de dispersão (necessária) de energia.

Sob uma perspectiva do direito civil e do direito de empresas, a realidade não é diferente: a pandemia é hipótese de revisão ou rescisão de contratos? Chamamos a isso de caso fortuito, força maior, ou nenhuma das duas? Podemos suspender o cumprimento de quais obrigações contratuais? Incidirá multa, ou outro encargo de mora? E as locações, como ficam? A única coisa que sabemos é que nossas leis não foram capazes de prever, com um mínimo de razoabilidade, regras de conduta para a sociedade pandêmica.

Nas relações de trabalho a situação é ainda mais crítica: podemos mitigar o rigor de uma legislação nitidamente defasada, ou fazê-lo justo agora seria um casuísmo, e não uma oportunidade eticamente fundada? Estamos prontos para absorver as peculiaridades do teletrabalho? Cortar horas, salários e benefícios? Podemos suspendê-los? Por quanto tempo? Será que, superada esta crise, os órgãos incumbidos de fiscalizar as empresas terão a compreensão e sensibilidade sobre o contexto das medidas, ou será o simples rigor da lei? Devemos nos submeter aos sindicatos, ou dar primazia às relações individuais?

Podíamos ir além e talvez nunca terminar, pois os vácuos legais estão abundando, do direito do consumidor ao regulatório; do financeiro ao tributário; do administrativo ao processual civil –foram e fomos todos assomados pelo coronavírus.

Isso dito, de nada adianta apontar para a incompletude das nossas leis, sugerindo a existência de uma falha no sistema. Aliás, o sistema é defeituoso mesmo, mas não por não ser capaz de prever uma pandemia. Os legisladores não podem contemplar todos os cenários e tentar regular o detalhe da vida humana. Quem poderia criar regras claras para tudo que estamos vivendo, se a experiência de hoje não tem paralelos legítimos no mundo contemporâneo?

Se conseguimos, ou estamos conseguindo, ainda que a duras penas, respostas para várias das indagações feitas aqui, isso se deve à premissa do Estado de Direito. É nele, ou através dele, que devemos encontrar as soluções, sob uma perspectiva da isonomia e da justiça social, obrigando suas instituições à necessária interação democrática, dialógica e dialética. A capilaridade que esperamos desse sistema foi posta à prova e respondeu como poderíamos esperar: a academia está sendo ouvida, a ciência respeitada, e a democracia representativa, com todos os seus defeitos, vem provando ser o único caminho viável.

Ainda assim, esta pandemia tem que ser vista como um ponto de inflexão, algo motivador e ensejador de uma nova mentalidade de pensar o direito, que tome como base a experiência vivida e use sabedoria, bom senso e boa técnica para preparar nosso arcabouço jurídico para situações futuras semelhantes, ainda que indesejáveis.

Sim, porque parece certo que a biologia, assim como o espírito beligerante do ser humano, é implacável; então, nos preparemos para a sociedade pós-pandêmica e permanentemente pré-apocalíptica.

Eduardo Serur

Sócio-fundador do escritório Serur Advogados, é mestre em direito comercial pela UFPE e doutor pela Universidade de Lisboa

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