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José Roberto Aguilar

O pêndulo da história

Reconhecer a barbárie será nosso maior salto

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José Roberto Aguilar

A pele que eu habito me machuca. Como se tivesse espinhos dentro. Nós, brasileiros, nunca estivemos dentro de uma guerra. Agora estamos. A peste chegou com o nome de novo coronavírus.

Eliminou o conforto, a normalidade, a razão e, inclusive, o tempo. Em uma parte do dia sentimos este pânico momentâneo e depois ele some, e a razão volta a sussurrar nos ouvidos: “Tudo isso vai passar”. Sim, vai passar, mas vai deixar rastros que vão conduzir a um caminho de uma nova pele.

O artista José Roberto Aguilar na abertura da exposição "Olhar Sobre Mulher", na Thomas Baccaro Art Gallery - Mathilde Missioneiro - 15.out.19/Folhapress

A epidemia traz consigo uma cruzada tenebrosa: o humanismo contra a barbárie. Junto com a banalização do mal (teoria criada pela alemã Hannah Arendt) caminha a banalização da morte. A eliminação pura e simples dos menos aptos: os idosos.

Aqueles que não têm a capacidade do desempenho e do consumo em uma sociedade capitalista. São, portanto, descartáveis.

Outra epidemia conveniente foi há três décadas: a da Aids.

Eliminou as sociedades alternativas e o amor livre, altamente perigoso para o consumo e a família. A epidemia mais tenebrosa foi a gripe espanhola. Ceifou 40 milhões de vidas. Esta banalização da morte levou ao surgimento do fascismo e do nazismo, ao genocídio de raças “impuras” e à Segunda Guerra Mundial.

O pêndulo da história está sempre em movimento, acompanhando a consciência coletiva, e ele só tem duas direções: para a esquerda, paz. Para a direita, guerra. Esquerda significa o humanismo. O olhar para si próprio e olhar o outro. Cuidar! O outro é você. Saber que a sua pele foi feita de consciência. E de lutas pela igualdade humana. Filósofos, cientistas, artistas, libertários e pessoas comuns ajudaram a costurar essa pele com enorme sacrifício, como demonstra a história. A sua pele é a sua casa, é a sua vida. Esquerda não é só uma posição política. É, antes de tudo, uma consciência humanitária.

A direita é a ordem imperando sobre a razão. A ordem do consumismo, da ganância e do poder. O domínio da mesmice e da sobrevivência do mais apto ao conformismo. A anticultura, a antipele. O guizo da cascavel. Mais do que uma posição política, é a vingança da ignorância.

O maior salto que poderemos dar é reconhecer a nossa barbárie. Todos nós somos as duas coisas. Amor e ódio. Não devemos combater o ódio (a barbárie) em nós mesmos pela luta. Na luta ele se fortalece. Aceitação. Ao aceitar o seu (meu, nosso) ódio, ele perde a força. Isso é mutação, ou a costura de uma nova pele, sempre em transformação. O fim do dualismo e do confronto.

Estarmos preparados para o desconhecido é que vai gerar uma nova economia. Não baseada no supérfluo e na moda, mas focada nas necessidades de uma vida mais despojada. Uma nova sociabilidade, que não se guia na competição individual, mas no abraço social. Os paradigmas do passado se esvaneceram. Traduzir o momento vai ser o maior desafio e para isso vamos ter que cair no aqui e no agora. Vai ser angustiante porque as canções de ninar também desapareceram, assim como o conforto de uma liderança política paternal. É angustiante, mas é a única forma de se ter uma identidade pessoal; isto é, uma nova pele.

A batalha de Armagedon não está na sobrevivência da epidemia do novo coronavírus. Mas em como vamos nos comportar depois dela. Devir e cair dentro do humanismo.

José Roberto Aguilar

Artista plástico, é pintor, performer, videomaker e escritor

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