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David M. Lapola

Futuras pandemias poderão começar no Brasil

Mudanças climáticas e perda de biodiversidade são fatores de risco

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David M. Lapola

A relação entre desequilíbrios ecológicos e a emergência de novas doenças como a Covid-19 não é nova. HIV, ebola, dengue e leishmaniose são exemplos dessa relação. Sabemos hoje que o primeiro surto de coronavírus na China, em 2002, foi iniciado por morcegos cavernícolas portadores do vírus, que infectaram animais selvagens que são vendidos lá como alimento. No caso da pandemia atual, não sabemos ainda se trata-se de um novo vírus que seguiu a mesma rota infecciosa dos morcegos para outros mamíferos selvagens, e destes para os humanos.

Considerando que a diversidade de coronavírus acompanha de perto a diversidade de morcegos, é muito provável que o Brasil, e principalmente a Amazônia, seja o maior repositório mundial de coronavírus. Mas então por que é que doenças como a Covid-19 não começam aqui no Brasil, sendo que temos também o ingrediente do desequilíbrio ecológico para isso? (há indicações, por exemplo, de que o desmatamento na Amazônia vai ter um novo aumento recorde neste ano).

David M. Lapola - Pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) - Unicamp
O ecólogo David M. Lapola, pesquisador da Unicamp - Dado Galdieri/Divulgação

Uma pesquisa de 2017 publicada na revista Virus Evolution revelou que, embora tenha uma grande quantidade de vírus circulando em populações de morcegos, a nossa região tem, por razões ainda desconhecidas, uma baixa taxa de “transferência” desses vírus para as populações humanas. Sabe-se que essas transferências são mais frequentes quando morcegos de certas famílias que são mais raras na América Latina, e mais comuns na Ásia e África, estão presentes. Mas não há evidência suficiente para afirmar que essas transferências não possam acontecer no futuro.

E é aí que as mudanças climáticas entram na história. A possibilidade de grande parte da Amazônia sucumbir devido à mudanças climáticas extremas na região —fenômeno batizado no Brasil de “savanização”— infelizmente ainda é real.

O que essa hipótese formulada há 20 anos previa que acontecesse na segunda metade deste século parece estar se configurando para um futuro muito mais próximo: estudo publicado em março na revista Nature mostra que o inestimável serviço que as florestas não perturbadas da Amazônia prestam para a humanidade ao absorver parte do carbono que colocamos na atmosfera vem diminuindo sensivelmente nas últimas décadas e deve colapsar dentro de 15 anos.

Os impactos das mudanças climáticas já são sentidos pela fauna e flora da região, com a crescente predominância de espécies de árvores mais resistentes a secas, e redução da presença de espécies típicas de áreas mais úmidas. Cadeias alimentares estão sendo alteradas, abrindo-se a possibilidade de que vírus que antes circulavam apenas entre animais silvestres, no coração da floresta distante, agora possam se transferir para outros hospedeiros, inclusive humanos.

A boa notícia é que a resolução desse problema clima-biodiversidade-epidemias também caminha de forma conjunta. O controle de futuras epidemias passa pela proteção dessas áreas de floresta de sua exploração predatória. Ao mesmo tempo, a proteção e restauração de florestas tropicais e seus amplos estoques de carbono são vistas hoje como uma das ações mais promissoras para a mitigação da mudança do clima.

A Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica tem agora a ambição de emplacar uma nova meta de se proteger 30% de cada bioma do planeta. Neste sentido, a Amazônia está bem, com aproximadamente 50% de sua área protegida, seja com unidades de conservação ou com terras indígenas. Nos outros biomas brasileiros, nem a meta anterior de 17% foi alcançada.

Já a Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas patina com a falta de um compromisso global ambicioso para diminuir as emissões de gases de efeito estufa. Sem esse esforço global para mitigar as mudanças climáticas, a biodiversidade e o equilíbrio dos nossos ecossistemas serão atingidos, por mais numerosas e extensas que sejam as áreas protegidas, e mesmo em um cenário de desmatamento zero.

A Covid-19 deve causar agora em 2020 a maior diminuição de emissões de gases de efeito estufa das últimas décadas. Este é um indicativo desanimador de que ações efetivas para se resolver ambos os problemas —das mudanças climáticas e da perda de biodiversidade— só serão tomadas a contento quando um outro já estiver adentrado as nossas portas, como é o caso agora.

David M. Lapola

Pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) - Unicamp​

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