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Claudio Maierovitch Pessanha Henriques

O mito do pico

Atingir o pico é sinônimo de catástrofe, não é uma aposta admissível

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Desde o início da epidemia de doença causada pelo novo coronavírus (Covid-19), a grande pergunta tem sido “quando acaba?” Frequentemente, são divulgadas na mídia e nas redes sociais projeções as mais variadas sobre a famosa curva da doença em vários países e no mundo, algumas recentes, mostrando a tendência de que os casos deixem de surgir no início do segundo semestre deste ano.

Tais modelos partem do pressuposto de que há uma história, uma curva natural da doença, que começa, sobe, atinge um pico e começa a cair. Vamos analisar o sentido de tal raciocínio. Muitas doenças transmissíveis agudas, quando atingem uma população nova, expandem-se rapidamente, numa velocidade que depende de seu chamado número reprodutivo básico, ou R0 ("R zero", que estima para quantas pessoas o portador de um agente infeccioso o transmite).

Claudio Maierovitch Pessanha Henriques - Médico sanitarista da Fiocruz Brasília, foi presidente da Anvisa (2003-05) e diretor de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde (2011-16)
O médico sanitarista Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, da Fiocruz - Divulgação

Quando uma quantidade grande de pessoas tiver adoecido ou se infectado mesmo sem sintomas, os contatos entre portadores e pessoas que não tiveram a doença começam a se tornar raros. Num cenário em que pessoas sobreviventes da infecção fiquem imunes àquele agente, sua proporção cresce e a transmissão se torna cada vez mais rara. Assim, a curva, que vinha subindo, fica horizontal e começa a cair, podendo até mesmo chegar a zero, situação em que o agente deixa de circular.

Em populações grandes, é muito raro que uma doença seja completamente eliminada desta forma, por isso a incidência cresce novamente de tempos em tempos. Quando a quantidade de pessoas que não se infectaram, somada à dos bebês que nascem e pessoas sem imunidade que vieram de outros lugares é suficientemente grande, então a curva sobe novamente.

É assim, de forma simplificada, que a ciência entende a ocorrência periódica de epidemias de doenças infecciosas agudas. A história nos ilustra com numerosos exemplos, como varíola, sarampo, gripe, rubéola, poliomielite, caxumba, entre muitos outros. Dependendo das características da doença e da sociedade, são ciclos ilustrados por sofrimento, sequelas e mortes. Realmente, nesses casos, é possível estimar a duração das epidemias e, em alguns casos, até mesmo prever as próximas.

A saúde pública tem diversas ferramentas para interferir em muitos desses casos, indicados para diferentes mecanismos de transmissão, como saneamento, medidas de higiene, isolamento, combate a vetores, uso de preservativos, extinção de fontes de contaminação, vacinas e tratamentos capazes de eliminar os microrganismos. A vacinação, ação específica de saúde considerada mais efetiva, simula o que acontece naturalmente, ao aumentar a quantidade de pessoas imunes na população até que a doença deixe de circular, sem que para isso pessoas precisem adoecer.

No caso da Covid-19, há estimativas de que para a doença deixar de circular intensamente será preciso que cerca de 70% da população seja infectada. Isso se chama imunidade coletiva (também se adota a desagradável denominação “imunidade de rebanho”). Quanto à situação atual de disseminação do coronavírus Sars-CoV-2, a Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que até a metade de abril apenas de 2% a 3% da população mundial terá sido infectada. Estimativas para o Brasil são um pouco inferiores a essa média.

Trocando em miúdos, para que a doença atinja naturalmente seu pico no país e comece a cair, será preciso esperar que 140 milhões de pessoas se infectem. A mais conservadora (menor) taxa de letalidade encontrada nas publicações sobre a Covid-19 é de 0,36%, mais ou menos um vigésimo daquela que os números oficiais de casos e mortes revelam. Isso significa que até o Brasil atingir o pico, contaremos 500 mil mortes se o sistema de saúde não ultrapassar seus limites —e, caso isso aconteça, um número muito maior.

Atingir o pico é sinônimo de catástrofe, não é uma aposta admissível, sobretudo quando constatamos que já está esgotada a capacidade de atendimento hospitalar em várias cidades, como Manaus, Rio de Janeiro e Fortaleza —outras seguem o mesmo caminho.

A única perspectiva aceitável é evitar o pico, e a única forma de fazê-lo é com medidas rigorosas de afastamento físico. A cota de contatos entre as pessoas deve ficar reservada às atividades essenciais, entre elas saúde, segurança, cadeias de suprimento de combustíveis, alimentos, produtos de limpeza, materiais e equipamentos de uso em saúde, limpeza, manutenção e mais um ou outro setor. Alguma dose de criatividade pode permitir ampliar um pouco esse leque, desde que os meios de transporte e vias públicas permaneçam vazios o suficiente para que seja mantida a distância mínima entre as pessoas.

O monitoramento do número de casos e mortes, que revela a transmissão com duas a três semanas de defasagem, deverá ser aprimorado e utilizado em conjunto com estudos baseados em testes laboratoriais para indicar o rigor das medidas de isolamento.

Se conseguirmos evitar a tragédia maior, vamos conviver com um longo período de restrição de atividades, mais de um ano, e teremos que aprender a organizar a vida e a economia de outras formas, além de passar por alguns períodos de “lockdown” —cerca de duas semanas cada, se a curva apontar novamente para o pico.

Hoje, a situação é grave e tende a se tornar crítica. O Brasil é o país com a maior taxa de transmissão da doença; é hora de ficar em casa e, se for imprescindível sair, fazer da máscara uma parte inseparável da vestimenta e manter rigorosamente todos os cuidados indicados.​

Claudio Maierovitch Pessanha Henriques

Médico sanitarista da Fiocruz Brasília, foi presidente da Anvisa (2003-05) e diretor de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde (2011-16)

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