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William Douglas

O monitoramento do uso de dados de celulares por governos viola direitos de privacidade? SIM

Ânsia de alguns governantes não justifica normas de exceção

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William Douglas

Entre os desafios impostos pela pandemia de Covid-19 ao Brasil está a necessidade de não ceder à tentação de, a pretexto de proteger a saúde pública, aceitar violações de direitos fundamentais e abusos do poder público. Defender, hoje, o Estado democrático de Direito significa impedir novas ilegalidades no futuro. Assim como a ciência médica combate o vírus, a ciência jurídica deve enfrentar o autoritarismo e resguardar a Constituição.

São inconstitucionais medidas como o monitoramento do deslocamento de cidadãos a partir de dados de seus celulares por parte de governos estaduais —que chegam até a propor prender quem usufrua do ir e vir para além do que o governante avalia adequado. Isso equivale a implantar tornozeleiras eletrônicas virtuais em todos, indiscriminadamente.

O juiz federal e professor William Douglas - 22.fev.10/Divulgação

A Constituição protege a privacidade, inclui a inviolabilidade das comunicações telefônicas na lista de direitos fundamentais e elenca as exceções à regra: apenas para fins de investigação criminal e de instrução processual penal, desde que com prévia autorização judicial. Dado que o acessório segue o principal, sem autorização prévia expressa do cidadão, o aparelho e seus sinais também não podem ser vigiados.

A falta de clareza com que alguns gestores públicos lançaram mão do monitoramento de telefones justifica até mesmo o questionamento e a suspensão dos convênios firmados com as companhias telefônicas. Os usuários de celular autorizaram a observação de seu comportamento? Quais informações as companhias repassam ao Estado? Quem acessa esses dados? Eles poderão ser usados em outras situações, como campanhas publicitárias e eleitorais?

Ainda que fossem superados esses óbices e que os dados fossem anonimizados, o monitoramento já nasce contaminado. Limitar o direito de ir e vir depende da vigência do estado de defesa ou de sítio. Esse direito é tão fundamental que há um remédio constitucional específico contra sua violação, o habeas corpus. Se o Estado não pode impedir a locomoção, não é razoável obter dados sobre ela.

O desrespeito à Constituição, sob pretexto de resguardar a saúde pública, está em outras situações amplamente noticiadas pela imprensa. É o que ocorre quando pessoas são presas pelo simples fato de caminharem pelas ruas e quando estados e municípios usurpam a competência privativa da União para dispor, por exemplo, sobre as praias. Um dos Estados brasileiros chegou a permitir, por decreto, a invasão de domicílios por motivo inexistente na Constituição.

Alguns podem identificar essas situações como colisão ou sobreposição de direitos fundamentais. Nesse caso, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) dirimir a questão, não aos prefeitos e governadores.

Ou, então, poderia o Congresso se antecipar com a aprovação de novas leis ou regras transitórias, desde que resguardados os direitos fundamentais dos cidadãos —como, de fato, os deputados e senadores já têm feito.

A ânsia de alguns governantes por apresentarem soluções para a crise não justifica normas de exceção. Diversas formalidades constitucionais são exigidas do presidente da República para que direitos sejam restringidos no estado de defesa ou de sítio. Governadores e prefeitos tampouco têm carta branca para dispor, por decreto, sobre aquilo que desejarem, na hora em que quiserem.

Respeito à Constituição e união são fatores essenciais para o enfrentamento do novo coronavírus.
Como alertou Albert Camus, “se o homem falhar em conciliar a justiça e a liberdade, então falha em tudo”.

William Douglas

Juiz federal, professor e autor, dentre outros 40 livros, de ‘Princípios da argumentação jurídica’ e ‘As 25 leis bíblicas do sucesso’

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