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Gaudêncio Torquato

O ponto de quebra

Capitão governante chega ao seu extremo e sinaliza fim do diálogo

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O país está à procura de um norte nos mapas da saúde, da economia e da política. As incertezas se expandem no turbilhão de angústias e dúvidas da sociedade, que aguarda respostas críveis sobre o prazo de arrefecimento da pandemia. Na frente da economia, a projeção aponta para aumento do desemprego e queda do PIB em torno de 6% neste ano, sob a moldura de estados e municípios quebrados à cata de recursos.

E no território da política, os brados do presidente Jair Bolsonaro —“Sou eu que mando, eu sou a Constituição, acabou, porra”—, este último verberando contra a Suprema Corte, mostram que o capitão governante chega a seu extremo, ou, para usar expressão conhecida na gestão empresarial: o ponto de quebra, o rompimento do equilíbrio ("break even point").

O professor, jornalista e consultor político Gaudêncio Torquato - Mathilde Missioneiro - 5.dez.19/Folhapress

Ou seja, a expressão brusca do mandatário-mor, abrindo luta aberta contra o Supremo, com alvos específicos nas figuras de dois ministros —Celso de Mello e Alexandre de Moraes— sinaliza para o fechamento do diálogo, uma ruptura. As jogadas no tabuleiro deixam o protagonista na iminência de um xeque, ainda sem ameaça de morte, caso se desvie do traçado legal como sinaliza.

Se o plenário da corte vier a endossar a decisão do ministro Moraes, contrariando, por exemplo, solicitação do procurador-geral da República, Augusto Aras, para encerrar o inquérito das fake news, a disposição do presidente tende a ser de enfrentamento. E que “consequências imprevisíveis” seriam essas apregoadas pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno? Sua mais recente nota atenua a anterior: “Intervenção militar não resolve nada”.

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, convocado para prestar depoimento, ficou em silêncio. Denota a estratégia do Governo de tentar usar todos os recursos para esvaziar o inquérito. Como se comportarão os generais em torno do presidente? O procurador-geral, escolhido ao cargo por Bolsonaro e, segundo se lê, um dos nomes para ingressar no STF na vaga do ministro Celso de Mello, a se aposentar no final do ano, sinaliza disposição de arquivar o inquérito.

O fato é que a crise entre os Poderes, submetida a tensões a cada ciclo político, só chegou ao ponto de ruptura nos tempos do arbítrio. Nos tempos da ditadura de 1964, o STF, por vezes, concedia habeas corpus e punha em liberdade presos políticos, mas sob cuidados para não anular processos contra “subversivos” e provocar a ira dos militares. No livro "Tanques e Togas", Felipe Racondo conta ser visível a preocupação dos ministros com a possibilidade de terem suas decisões descumpridas e deslegitimadas.

Será que o presidente quer resgatar aquela era? Frases como a de Eduardo Bolsonaro (“É preciso apenas um cabo e um soldado para fechar o STF") são jogadas na cesta da bazófia. Mas lembram a índole autoritária do clã.

Não se enxergam no horizonte nuvens prenunciando a volta aos tempos de chumbo. O país abriga imensa composição no meio da pirâmide, onde a maior das classes sociais constrói um pensamento democrático com repúdio a incursões nas extremidades do arco ideológico. Apesar da propensão para conferir mais força ao Estado, as democracias contemporâneas estão vivas. Poderão até desfraldar bandeiras nacionalistas, a partir de restrição, por exemplo, à imigração.

Sob essa crença, golpe não é um desenho no nosso cenário. Nem mesmo é provável aceitar a posição do grande jurista Ives Gandra da Silva Martins que, ao pinçar o artigo 142 da Constituição (sobre o papel das Forças Armadas na defesa da lei e da ordem), atribuiu a elas a função de poder moderador. Qualquer ação das Forças ante eventual conflito de caráter extremo entre os poderes Judiciário e Executivo seria vista como tentativa de golpe.

Portanto, tensões intensas entre os Poderes haverão de ser equacionadas de acordo com as atuais regras do jogo. E se mudança no sistema normativo deve ser feita para propiciar melhores condições de administração de conflitos, que se use a via legal e tramitando pelo Parlamento.

O chefe do Executivo, por sua vez, há de considerar que as normas foram feitas para ser cumpridas. Se critica a interpenetração de funções entre os três Poderes, e tem parcela de razão nisso, pode se valer da base política para fazer ajustes. Arroubos como “acabou, porra” apenas reforçam a imagem antidemocrática que tem estampado.​

Gaudêncio Torquato

Jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político

TENDÊNCIAS / DEBATES

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