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Betty Milan

O vírus do pânico

O prolongamento indefinido da vida se tornou a nossa principal meta

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Betty Milan

Desde que o vendaval da Covid-19 começou, a doença é o tema diário da imprensa. Ao assistir ao noticiário na televisão, o medo vai tomando conta de nós, e muitos entram em pânico. Por quê?

É verdade que o vírus é altamente contagioso, os portadores não têm como ser identificados e ainda não existe vacina. Mas a Covid-19 mata muito menos do que outras doenças e atinge sobretudo pessoas cujas defesas imunitárias são baixas, além das que se expõem à contaminação.
Por que alguém que nem é idoso, nem cardíaco, nem obeso, nem diabético, nem asmático entra em pânico? A morte é um tema que evitamos, como se a simples menção da mesma pudesse acabar conosco.

A psicanalista e escritora Betty Milan - Patrícia Stavis - 14.jun.19/Folhapress

A imagem dos doentes internados e dos caixões impede a negação da morte e abala a crença na imortalidade. A Covid-19 sabota o negacionismo que nos caracteriza e nos desestabiliza. Podia, ao contrário, servir para nos ensinar a refletir sobre a morte e planejá-la. Citamos continuamente a frase de Montaigne: filosofar é aprender a morrer. Porém, ninguém se debruça sobre o próprio fim. As sociedades ocidentais fizeram da morte um tabu, apressando o funeral, esquecendo o ritual do luto e esvaziando os cemitérios.

Quando meu pai faleceu, aos 48 anos, mamãe recebeu durante uma semana as pessoas que iam expressar os pêsames e rememorar a vida dele, procurando nos confortar. Aprendi que “ninguém morre quando fica no coração de alguém”.

Como diz o escritor francês Alain Nueil, o desejo de alcançar a velhice extrema adiou a morte para as calendas. O prolongamento indefinido da vida e o consequente adiamento do fim se tornou a nossa principal meta. Em nome dela, o mundo agora se uniu, declarando guerra ao inimigo invisível que nos ronda.

O inimigo invisível precisa ser combatido para evitar um genocídio viral —como diz o papa Francisco. Porém, deveria também nos fazer enxergar o que é visível, e a televisão mostra diariamente: a extensão sem fim das favelas (onde não existe água encanada, saneamento básico e as pessoas vivem amontoadas). Por que a pandemia não pode servir para eliminar de vez as favelas?

O mundo em que estamos é surreal. Fazemos o possível e o impossível para alcançar a imortalidade e quase nada para evitar a morte de crianças desnutridas, a adesão quase inevitável de adolescentes pobres ao crime e a tantas balas perdidas. Mais de 1,35 milhão de pessoas morrem todo ano no mundo vítimas de acidentes de trânsito, e 93% delas são de países de baixa e média renda.

Se o pânico e o egoísmo não prevalecerem, a pandemia poderá servir para evitar dramas, cuja solução é continuamente adiada, e conquistar um mundo onde a indiferença não seja um lema. A Covid-19 já está ensinando coisas fundamentais, como a contenção —que o confinamento implica—; o uso dos meios digitais para solucionar problemas antes só resolvidos presencialmente —o que diminui a necessidade do deslocamento e a poluição—; e a valorização de trabalhos até então desqualificados —guardas, faxineiros, lixeiros… Pode ensinar mais.

Betty Milan

Escritora e psicanalista; autora dos romances ‘O Papagaio e o Doutor’ e ‘Baal’ (ed. Record), entre outros

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