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Eduardo Tarazona Santos

Os genomas brasileiros

Estudo sobre a influência da escravidão revela a diversidade genética das populações

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Eduardo Tarazona Santos

Gosto de imaginar os genomas dos brasileiros, hispano-americanos e afro-americanos, povos miscigenados por antonomásia, como mosaicos de ancestralidades europeias, africanas e nativas americanas.

Embora o genoma seja linear, as implicações da informação que guarda o fazem multidimensional. O Carnaval, por exemplo, é uma das melhores metáforas brasileiras da miscigenação, sendo frequentemente interpretado em termos de miscigenação, ancestralidade e história, conceitos polêmicos no Brasil e nas Américas. Nós, cientistas que estudamos os genes humanos, também nos ocupamos desses conceitos, em parte pela necessidade intrinsicamente humana de conhecer nossa história, mas principalmente porque a distribuição geográfica de variações do genoma que causam doenças (por exemplo, anemia falciforme) depende da história.

Negros no Porão", obra de Johann Moritz Rugendas do álbum "Viagem Pitoresca ao Brasil" (1835), que mostra o tráfico de escravos africanos - Reprodução

A ciência que combina biologia, estatística e ciências da computação para ler a história no DNA é a genética de populações humanas, com forte tradição no Brasil. Parafraseando Isaac Newton, quando nós, geneticistas de populações da minha geração enxergamos longe, é porque estamos em cima dos ombros de pesquisadores brasileiros como Francisco Salzano (falecido em 2018) e Sérgio Pena, que colocaram o Brasil no mapa da genômica humana mundial.

Nessa tradição, meu grupo de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais acabou de publicar ante a comunidade científica internacional o maior estudo sobre a influência da escravidão na diversidade genômica das populações das Américas. Além de confirmar que a ancestralidade africana predominante nas Américas originou-se de países como Nigéria e Gana, na África centro-ocidental, descobrimos que a ancestralidade do oeste africano (por exemplo, Senegal e Gâmbia) aumenta em direção ao norte do continente americano, sendo rara no Sudeste e Sul do Brasil, onde a ancestralidade dos povos bantu, do sul e leste da África, apresentam a sua maior prevalência.

Isso foi uma consequência dos ventos e correntes oceânicas que determinaram dois sistemas de navegação atlântica (norte e sul), e da geopolítica do período colonial, com Portugal como único protagonista com enclaves permanentes no sul e leste da África, e Rio de Janeiro como porto principal de desembarco de escravizados no Sudeste do Brasil.

Comparando dados do genoma e de fontes históricas, descobrimos que com o pico da chegada dos africanos escravizados nas Américas, entre 1750 e 1850, se intensificou com a miscigenação biológica, de forma que esse período foi crítico em moldar nossa natureza miscigenada. Por outro lado, a diáspora africana foi tão grande (acima de 10 milhões de pessoas), que a diversidade genética encontrada nas porções africanas dos nossos genomas é semelhante àquela das populações africanas de origem, as mais diversas do mundo. Mas a miscigenação homogeneizou esta diversidade e as mutações responsáveis por doenças entre as diferentes populações das Américas.

Um problema de saúde global é que a medicina sabe muito mais sobre doenças, resposta a fármacos e genética das populações de origem predominantemente europeia quando comparado com outras populações, como as africanas ou os nativos das Américas. Essa desigualdade limita a aplicação dos avanços da medicina de precisão nessas populações. Por isso, no Brasil, onde nosso genoma tem componentes africanos e nativas americanos, precisamos de estudos como o nosso sobre a escravidão, o que além de ser uma escolha ética e uma necessidade do Sistema Único de Saúde, é uma oportunidade econômica.

A medicina de precisão representa um mercado mundial crescente de mais de US$ 7 bilhões, no qual empresas brasileiras de diagnósticos, software e gestão de big data podem se integrar. O know-how brasileiro para atuar neste mercado foi e é principalmente desenvolvido em universidades e institutos públicos, os melhores do país, os quais, com a exceção de iniciativas atuais muito louváveis do Ministério de Saúde, são hoje negligenciados, quando não difamados.

Quando a emergência do coronavírus nos impõe medidas baseadas no tratamento científico das evidências, a importância de cuidar do tecido científico brasileiro fica evidente. Tomara que aprendamos a lição.

Eduardo Tarazona Santos

Geneticista e doutor pela Universidade de Bolonha (Itália), é professor de genética humana na UFMG, onde lidera o Laboratório de Diversidade Genética Humana

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