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Ricardo Nêggo Tom

O 'príncipe', os pastores e a Krespinha

Três recortes do racismo à brasileira revelam um experimento social falido

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Ricardo Nêggo Tom

O Brasil pode ser considerado experimento social falido. Também, não poderia ser diferente, uma vez que o colonizador aqui chegou iludindo os indígenas, donos do lugar, oferecendo-lhes um “espelho” em troca de suas terras. Não satisfeitos, ainda cuidaram de dizimá-los cultural e existencialmente. Não sem antes catequizá-los e apresenta-los ao seu “Deus” branco e eurocêntrico, que legitimava, entre outras coisas, a escravidão de seres humanos e a morte daqueles que não se submetessem a vontade de seus “filhos” europeus.

Herdeiro legítimo dos criadores desse experimento social, cuja fórmula foi elaborada para a manutenção de castas e privilégios ao longo dos séculos, Dom Bertrand de Orleans e Bragança, que se apresenta como "príncipe imperial do Brasil", declarou em recente conferência do Itamaraty que não existe racismo no país. Segundo ele, “estão procurando criar esse problema racial aqui no Brasil, mas não conseguem. Aqui todos nos damos bem. Aqui no Brasil, todos nós vivemos bem”. Disse isso, sem ficar corado de vergonha depois.

Print de tela da esponja de aço Krespinha
Bombril foi acusada de racismo por esponja de aço chamada Krespinha - Reprodução


O simples fato de termos alguém que ainda ostenta com orgulho o título de “príncipe imperial” é uma prova de que o racismo sempre será relativizado, quando não negado, por aqueles que desde sempre foram favorecidos por sua existência na estrutura da nossa sociedade. Não abrir mão de seus títulos e privilégios é manter o status quo sociorracial que foi instituído por seus ancestrais. Título e cor da pele são privilégios para poucos por aqui. E, entre esses poucos agraciados com tamanha nobreza e honraria, não figuram os de pele preta.

A esses, também conhecidos como: “classe mais pobre”, “encardidos”, “mais moreninhos”, “queimados de sol” e “povo meio sujo”, segundo a definição dos pastores Rodrigo dos Santos e Jéssica Maciel, sua mulher, líderes da Igreja Batista do Calvário, em Toledo (PR), restou a falência completa e a mais solene ignomínia do sistema. Um sistema que costuma retratá-los de maneira pejorativa, inferiorizada e marginal. Tanto no dia a dia, como na maioria das campanhas e peças publicitárias. Um exemplo disso, é a “nova” esponja de aço Krespinha, da Bombril, indicada para limpezas pesadas (após acusações de racismo, a empresa retirou o produto de seu portfólio).

Esses dois recortes são bem sintomáticos e convergem a um mesmo ponto: a supremacia racial branca. O pastor Rodrigo dos Santos, para exaltar a beleza de sua esposa e as “qualidades” que a fez se destacar entre as demais pessoas do lugar, cita a sua pele branca, os seus cabelos loiros e o seu ar nobre. Sua intervenção racista nem foi tão cordial assim como de costume, dados os adjetivos utilizados por ele ao fazer sua analogia. Por sua vez, a Bombril complementa o “raciocínio” do tal pastor ao tentar relançar a sua esponja de aço Krespinha —uma versão dos anos 1950, época onde zombar do cabelo crespo dos pretos era algo lúdico e aceitável.

Propaganda da marca Krespinha na década de 1950 com desenho estereotipado de menina negra
Propaganda da marca na década de 1950 usava imagem estereotipada de menina negra - Reprodução


Inclusive, a embalagem original do produto nos anos 1950 era estampada por uma garota preta, cujo cabelo era igual ao da esponja. Talvez o "príncipe imperial" do Brasil não enxergue racismo nas palavras dos pastores e na propaganda da Bombril. O que é natural, vindo de alguém que ainda não percebeu que não é mais príncipe e que não vivemos mais numa monarquia. Porém, a ideologia negacionista dos fatos não os tornam irreais ou inverídicos. Ela apenas evidencia a má-fé dos ideólogos diante de um problema estrutural que eles não têm o menor interesse em corrigir porque se beneficiam de sua existência.

A manutenção ou a perpetuação do racismo em nossa sociedade é servir à receita original do experimento social brasileiro. Uma colher de chá cheia de privilégios para os herdeiros das capitanias e uma pitadinha de direitos para os descendentes dos escravizados, só par dar um gostinho de liberdade. Essa é a fórmula do nosso sucesso branco e eurocêntrico.

Um país onde ressurgem dos escombros mais sombrios de sua história príncipes, integralistas, soberanistas, supremacistas, ditadores, religiosos escravocratas e propaganda que sugere inferioridade racial não deve ser considerado mesmo racista. Deve ser considerado falido, ética, moral, social e humanamente falando.

Ricardo Nêggo Tom

Cantor e compositor

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