No Brasil em surto pandêmico, a menção a palavrões traz à mente o famoso vídeo com cenas explícitas do que se poderia chamar de pandemônio ministerial. Ao assisti-lo, o que mais entristece não é a tosca forma como se trata dos destinos da nação, mas sim a incapacidade de enunciar os problemas a serem resolvidos. Com algumas exceções. Por exemplo, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) sugeriu aproveitar a comoção causada pelo coronavírus para “passar a boiada” da simplificação de normas infralegais relacionadas ao licenciamento ambiental. Foi, é claro, totalmente infeliz na maneira como apresentou o assunto e, por isso, sofreu severas críticas.
Mas será que ele queria mesmo, maldosamente, mudar as boas regras que efetivamente protegem o meio ambiente? Ou, ao contrário, queria mudar as más regras, também existentes, que têm sido utilizadas para embaraçar o desenvolvimento sustentável? Não se discutiu sobre isso durante a reunião e muito menos ao longo do linchamento virtual do ministro que ocorreu nos dias subsequentes. Sequer indagou-se a ele o que especificamente pretendia mudar. A forma derrotou o conteúdo.
O meu ponto é que não basta defender a democracia: é preciso aperfeiçoá-la. É preciso mostrar aos defensores do estilo Bolsonaro de governar que eles não são os únicos descontentes com os resultados entregues, na prática, pela democracia. Nós, os democratas, também estamos insatisfeitos e queremos mudanças. Porém, com o devido respeito às regras democráticas. Como dizia Churchill, “a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas”.
Nós, os democratas, temos que ter o bom senso de reconhecer os equívocos cometidos nas últimas décadas e a disposição de corrigi-los. A Constituição de 1988 foi gestada pouco depois do fim da ditadura militar, numa época em que a sociedade ansiava por um Estado que lhe assegurasse uma série de direitos negados por mais de duas décadas. O debate se concentrou nos direitos dos cidadãos, com pouca atenção às suas obrigações. Foi a Constituição possível de ser aprovada no contexto de amplo pacto social. Devemos preservá-la com o máximo empenho por uma razão simples: qualquer alternativa seria muitíssimo pior. Porém, sem descuidar de aperfeiçoar o marco legal e, mais importante, de melhorar a eficácia das instituições públicas.
Temos um Estado idealmente concebido como se fosse possível assegurar as generosas disposições constitucionais para a população, mas que na prática não consegue entregar serviços razoáveis. Um estado prisioneiro do formalismo, que até ontem desconhecia a existência de quase 40 milhões de brasileiros. Um Estado que cria dificuldades para os empreendedores e que aplica ao administrador público a presunção de culpa, não de inocência. Um Estado que não se constrange em propiciar condições de vida, trabalho e aposentadoria aos servidores públicos inalcançáveis pela maior parte da população. Um Estado composto por três Poderes que deveriam ser muito mais eficientes.
Tome-se o Poder Judiciário. Embora o seu custo tenha caído ao longo de dez anos de 1,93% para 1,37% do PIB, ainda é, provavelmente, o campeão mundial da categoria (a média dos países da OCDE é de 0,5% do PIB). Uma típica peça de processo judicial obriga o juiz a desperdiçar valioso tempo no estudo de argumentos e citações marginais ao assunto em tela. Ou, pior ainda, induz o juiz a proferir extensa sentença, perdendo o foco do que é essencial. Aqui também a forma derrota o conteúdo.
Assim como assistir à famigerada reunião ministerial pontuada por palavrões foi uma triste experiência, também inquietante é ouvir ministros de tribunais superiores proferirem votos de dezenas de páginas, pontuados por palavrório com pouca relevância para o que se discute. Igualmente desconfortável é constatar que pronunciamentos de parlamentares sobre temas importantes são raramente ouvidos com atenção pelos seus pares. Esses tristes comportamentos retratam a nossa cultura de pouco valorizar a objetividade e a produtividade.
O aperfeiçoamento democrático é simultaneamente tarefa individual e conjunta dos três Poderes, que deveriam se comportar como se fossem irmãos de uma família bem constituída. O Supremo Tribunal Federal, formado por ministros de grande erudição e responsabilidade cívica, na qualidade de colegiado máximo do Poder Judiciário, deveria liderar o esforço para aumentar a produtividade dos três Poderes.
Não como um pai que aplica um corretivo nos filhos por eventuais traquinagens, e sim como um irmão que serve de exemplo para que os demais Poderes também se engajem nas necessárias transformações.
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