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Antônio Rangel Bandeira

Pandemia e violência

Radicais e delinquentes armados são instrumentos de desestabilização

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Dividimo-nos quanto a partidos políticos e futebol. Mas, quando ameaçados de morte pela Covid-19, as discordâncias perdem importância. Queremos saber o que diz a ciência. No caso das mortes por arma de fogo nem sempre é assim. Para a ONU, taxa acima de 10 mortos por arma de fogo por 100 mil habitantes é "epidêmica" ——e temos o dobro.

Todas as pesquisas realizadas no Brasil comprovam que "quem reage, morre", devido ao fator surpresa, mas alguns persistem na ilusão da autodefesa. "Para cada indivíduo que tem êxito ao reagir com arma a um assalto armado, morrem 34 vítimas" (Violence Policy Center). Mas o presidente Jair Bolsonaro insiste em negar a ciência tanto no caso da pandemia quanto das armas.

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Acompanhado de deputados que fazem sinal de arma com as mãos, o presidente Jair Bolsonaro assina decreto que flexibiliza regras para atiradores esportivos, caçadores e colecionadores - Pedro Ladeira - 7.mai.19/Folhapress

Bolsonaro não é o Exército. Sabemos que essa relação é conflituosa, desde que foi afastado das Forças Armadas. Ano passado, o presidente autorizou que civis comprassem fuzis de guerra. Mas o Exército vetou a medida. Bolsonaro reagiu e liberou fuzis calibres 5.56 e 7.62, de uso exclusivo das Forças Armadas, para os CACs (caçadores, atiradores e colecionadores).

O presidente determinou que se elevasse a quantidade de munição que civis podem comprar de 50 por ano, para cada arma, para 550 por mês! A regulamentação do Estatuto do Desarmamento havia acatado minha proposta de 50 balas, considerando mais que satisfatória para a pretendida "autodefesa", pois, para treinar, tem-se a munição dos clubes de tiro. Com as novas regras, os CACs podem comprar até 6.600 balas por arma. Um arsenal para ser revendido para as milícias e para o crime organizado.

O último embate entre o Exército e Bolsonaro no tema das armas nos remete ao assassinato da vereadora Marielle Franco. Seu assassino usou balas de um lote vendido pela empresa privada CBC fora dos padrões. O Ministério Público Federal determinou providências. O Exército promulgou, então, três portarias, criando um sistema para rastreamento de armas e munições. Mas, passando por cima da autonomia do Comando Logístico, o presidente autocrata exigiu sua revogação. "O Exército foi humilhado", comentou-se entre os militares.

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Placa com nome e símbolo do partido Aliança pelo Brasil, feita com cartuchos de balas, durante evento de lançamento da legenda, em Brasília - Pedro Ladeira - 21.nov.19/Folhapress

Exonerado, o diretor da DFPC (Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados) escreveu "desculpando-se se, por vezes, não atendeu aos interesses pontuais (da indústria bélica). Nosso maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança social". A procuradora Raquel Branquinho alertou: "A ausência de controle vai favorecer as organizações criminosas que praticam o contrabando e abastecem milícias". Mas a 25ª Vara Cível Federal de São Paulo suspendeu a revogação das três portarias, uma vez que tinha sido ilegalmente assinada pelo oficial previamente exonerado.

Sabemos que o papel das milícias nos golpes é o de agredir quem diverge e de agir no lugar de Forças Armadas omissas. Este é o papel dos comandos criados por Hugo Chávez. Entre nós, enfermeiros e jornalistas já foram agredidos. Afrontando a Constituição, o presidente exortou os que se negam a seguir a quarentena estabelecida por governadores e prefeitos a reagirem com armas (72% dos brasileiros se opõem a essa insensatez, segundo o Datafolha).

Bolsonaro, assim, quebra um dos pilares do regime democrático: o monopólio do uso da violência legal pelo Estado. Um grupo armado acampou em frente ao Congresso. A Associação CAC Brasil (são 400 mil CACs, com meio milhão de armas) lançou manifesto se dizendo disposta a "agir como força de apoio a Bolsonaro".

O registro de novas armas em um ano cresceu 98% (Departamento de Polícia Federal). Os homicídios saltaram 9% no primeiro trimestre e os feminicídios, 22,2% (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Mistura explosiva de armas e pandemia.

Radicais e delinquentes armados são instrumentos de desestabilização. Desmoralizar as instituições, mobilizar os desempregados e os caminhoneiros grevistas, aliciar policiais amotinados e armar milicianos são atitudes coerentes de uma estratégia para ferir de morte a democracia.

Antônio Rangel Bandeira

Sociólogo, é ex-consultor da ONU e do Viva Rio e autor de 'Armas Para Quê?' (Editora LeYa)

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