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Milly Lacombe

A chamada cultura do cancelamento representa uma ameaça à liberdade de expressão? NÃO

O verbo não foi pinçado ao acaso: ele revela desejos maiores

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Milly Lacombe

Escritora e roteirista, colunista das revistas Trip/Tpm, cronista do UOL Esportes e autora do romance 'O Ano em Que Morri em Nova York' (ed. Planeta).

Não é culpa da liberdade de expressão que tenhamos dificuldade em entender seus limites. Toda a liberdade, a despeito do que nos tenha sido ensinado, exige atenção.

Liberdade não é fazer o que queremos fazer, na hora que bem entendermos, como der na telha. Liberdade é um conceito que envolve prudência, disciplina e respeito pelo outro porque ninguém existe sozinho.

A jornalista e escritora Milly Lacombe
A jornalista e escritora Milly Lacombe - Greg Salibian - 23.jun.16/Folhapress

Não é liberdade de expressão desumanizar. Palavras ferem, aniquilam e podem matar. Palavras importam e, como uma arma, precisam ser usadas com muito cuidado. A questão é que vivemos em um sistema que todos os dias vomita em nossas caras que liberdade está associada a poder fazer escolhas. Se fosse isso teríamos um problema sério logo de saída porque a própria experiência de estarmos vivos não nos dá muita escolha sobre morrer ou não.

Liberdade não tem nada a ver com escolhas, nem se trata de conceito individual. Ninguém é livre sozinho, e se a tragédia desse vírus pode revelar alguma coisa talvez seja esta: a de que estamos nos afetando uns aos outros o tempo inteiro.

Ter alguma agência sobre sua vida é ter autonomia, não liberdade. A cultura do cancelamento nasceu dessa confusão conceitual. É perfeitamente possível, e até divertido, cancelar temporariamente uma pessoa sem reduzir sua reputação a pó. Para isso, basta que critiquemos ideias e atitudes, e não a pessoa.

Recentemente, cancelei Ellen DeGeneres em texto que publiquei nesta Folha. Isso não quer dizer que deixe de respeitar sua jornada, especialmente no que diz respeito a ter me ajudado a sair do armário. Hoje, entretanto, suas ideias já não falam mais comigo e se opõem a meus valores. Aqui, nos separamos.

Mas existe uma potência na palavra cancelamento. Numa sociedade em que tudo virou mercadoria e o único poder é o do capital, cancelar é um verbo que impõe respeito, é a defesa do sujeito contra um sistema que só o valoriza enquanto consumidor. Todos e todas que já se lançaram à penosa missão de cancelar algum serviço entendem que só somos vistos quando ameaçamos o cancelamento.

O verbo não foi pinçado ao acaso: ele revela desejos maiores, raivas soterradas que estão sendo, para delírio de quem está no poder, individualizadas e redirecionadas.

O ódio que estamos sentindo não é ao outro ou à alteridade, embora assim pareça, mas a um modo de vida que nos desautoriza e deslegitima enquanto sujeitos. Trabalhar, pagar contas, trabalhar mais, pagar mais contas, morrer. E, no fim do dia, a massa trabalhadora (e por trabalhador entendam qualquer um que precise de emprego e salário para viver, e também as mulheres que trabalham cuidando de suas casas) esgotada, exausta, adoentada. Em nome do quê? De sonhar em passar os últimos anos de nossas vidas num lugar tranquilo e sem poluição, cercados de natureza e do barulho dos pássaros; sonhar em viver como os indígenas de quem tomamos a terra e a quem todos os dias desmoralizamos.

Cancelar é legítimo se entendermos que pessoas são incanceláveis, mas ideias e valores são perfeitamente canceláveis. E que, depois de amanhã, o que foi hoje cancelado pode ser descancelado --porque a vida é movimento.

Assim, a cultura do cancelamento não pode ameaçar a liberdade de expressão. O que ameaça a liberdade de expressão é concentração de riqueza e de poder. Assim como uma sociedade organizada por estruturas racistas, machistas e LGBTfóbicas.

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