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Leandro Narloch

A chamada cultura do cancelamento representa uma ameaça à liberdade de expressão? SIM

Prática histérica funciona como aviso: quem ousar discordar será eliminado

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Leandro Narloch

Jornalista e autor de 'Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil' (ed. Globo) e 'Escravos, a vida de 28 brasileiros esquecidos pela história' (ed. Sextante), entre outros

Imagine se um repórter da Folha, depois de ler estudos e entrevistar cientistas, descobre que uma substância usada em cosméticos provoque câncer. Ao propor a reportagem, ouve do chefe: "Este assunto é delicado. Podemos perder anunciantes, deixa pra lá".

O comportamento do editor, é claro, não seria fiel ao projeto editorial desta Folha. Os leitores esperam que o jornal retrate a verdade sem se preocupar com interesses de empresas.

O jornalista Leandro Narloch
O jornalista Leandro Narloch - Keiny Andrade - 9.mai.17/Folhapress

Pois suponha que num outro dia o mesmo jornalista, depois de ler estudos e entrevistar cientistas, conclua que é um mito dizer que as mulheres ganham 25% menos que os homens para o mesmo trabalho. Ao propor a reportagem, ouve do chefe: "Este é um tema sensível e inconveniente. Vai gerar revolta no Twitter e perda de anunciantes. Deixa pra lá".

Se a decisão do editor valesse, a atividade jornalística também se curvaria a interesses --neste caso, os do movimento feminista.

A cultura de cancelamento criou um ambiente em que é perigoso discordar de ideias, propostas e até de termos preferidos por minorias identitárias. Quem ousa discordar corre o risco de ser linchado virtualmente, perder o emprego, o patrocínio ou a verba de pesquisa. É um ambiente terrível para o debate aberto e a liberdade de expressão.

O problema é mais grave na ciência. O que garante a superioridade do método científico é o sistema de conjecturas e refutações. Alguém apresenta uma ideia, outros a testam, rejeitam, reformulam ou a comprovam.

No entanto, diante da pressão das minorias identitárias, hoje é politicamente muito vantajoso defender teses que concordem com os ativistas. E é desvantajoso discordar.

Assim, a roda de conjecturas e refutações não gira. Ideias que não passaram pelo escrutínio científico ganham força e motivam políticas públicas com grandes chances de serem tiros no pé.

As universidades, as palestras de eventos empresariais, os canais de TV deixam de ser ambientes de discussão aberta e passam a abrigar "concursos de demonstração de lealdade", como diz o economista Cameron Harwick. Ganha aplausos e likes quem se mostra mais comprometido com um valor abstrato ("sustentabilidade", "diversidade"), e não os autores dos melhores argumentos e hipóteses sobre um problema.

Os participantes desses concursos de lealdade se satisfazem com a ideia que mais sinalize virtude e não se preocupam em estudar as questões a fundo. Colam um rótulo abjeto na opinião divergente ("revisionismo", "defesa de privilégios", "opinião sem lugar de fala") e interditam o debate. O cancelamento funciona como um aviso aos colegas: quem ousar discordar será eliminado.

Em defesa dos cancelamentos, costuma-se citar o "paradoxo da tolerância" de Karl Popper. "Devemos tolerar tudo, menos a intolerância", teria dito o filósofo austríaco. Essa é uma leitura superficial e apressada do que ele afirmou. Popper se referia a incitações evidentes à violência e à censura, não a simples discordância de ideias. Defendia efusivamente a liberdade de expressão e o escrutínio científico.

Também se diz que cancelamento é apenas uma tentativa de "responsabilizar alguém pela forma irresponsável pela qual compartilhou um pensamento". Aqui vale lembrar o que aconteceu com Demétrio Magnoli, colunista da Folha, numa feira literária na Bahia, em 2013. Por discordar de cotas raciais, Magnoli recebeu manifestantes que atiraram até uma cabeça de porco no palco do debate, que acabou cancelado.

Não estamos lidando com uma sensata responsabilização, mas com um apedrejamento histérico de infiéis.

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