A ciência é movida por curiosidade. E deve continuar assim. A ciência básica, que não está preocupada em gerar produtos, mas em compreender fenômenos, é a base da geração de conhecimento. Na área de biotecnologia, se não fosse a pesquisa básica com genética, não teríamos bactérias transgênicas produzindo insulina para diabéticos. Todas as vacinas que estão sendo pesquisadas agora para Covid-19, e os testes diagnósticos, não existiriam sem a biologia fundamental.
Mas vacinas e testes, apesar de nascerem na pesquisa básica, só atingem pleno potencial como pesquisa aplicada. São produtos, postos à disposição do público e para seu benefício, gerados por conhecimento científico. Esses produtos precisam de estratégias de mercado, logística e capacidade de produção. E, para isso, a ciência precisa interagir com outros setores da economia. Indústrias, transportes e financiamento são engrenagens que põem o poder da ciência a serviço da sociedade. No Brasil, essa conexão é ainda frágil. Muito pouco do conhecimento gerado nas pesquisas realmente tem incentivo para se transformar em produto, e o cientista brasileiro tem poucas opções de emprego fora da academia.
Hoje temos diversas vacinas em desenvolvimento no Brasil. Quantas dessas teremos condições de testar e produzir na escala necessária, para além das provas de conceito nos laboratórios? Em outros países, uma tradição de fomento a empreendedorismo e startups permite, por exemplo, que uma pequena empresa de biotecnologia dos Estados Unidos desenvolva testes diagnósticos para vírus de RNA, como o novo coronavírus, baseados em tecnologias inovadoras, e os ofereça ao mercado.
Essa cultura ainda não existe no Brasil, onde seguimos dependentes de tecnologias importadas, embora nossos cientistas tenham plena capacidade de compreender os princípios fundamentais, de recriar e até de aperfeiçoar os processos por trás das grandes inovações internacionais. Mas quem os incentiva a isso? Vivemos num meio que vê a publicação dos resultados de laboratório como um fim em si mesmo, e onde a conexão com o setor produtivo é vilanizada.
O comércio internacional talvez possa garantir o abastecimento do país com vacinas, insumos e medicamentos em tempos normais. A pandemia, no entanto, trouxe à tona vulnerabilidades importantes. Colhemos os frutos de décadas de falta de investimento em ciência. Mesmo os acordos recentes de licenciamento de vacinas, muito bem-vindos, são limitados por nossa incapacidade produtiva. Não temos fábricas adequadas para escalar a produção.
O investimento necessário virá de onde, se o país está quebrado e o governo federal opta por menosprezar a ciência?
É possível identificar uma tríade de elementos que bloqueia a transição de conhecimento gerado para produto à disposição da sociedade: a tradição brasileira de pouco incentivo à indústria de base tecnológica; o ambiente normativo-legal complexo, volátil, imprevisível e pouco amigável; e universidades e sistemas de avaliação e controle que se preocupam mais com métricas de produtividade acadêmica do que com impacto econômico-social.
Sem uma indústria de alta complexidade, com acesso a crédito, mão de obra qualificada e incentivo estratégico, qualquer tipo de inovação encontrará amarras. Amarras que prendem os cientistas no campo acadêmico. Adicionalmente, a burocracia gera atrito, impondo barreiras a uma maior interação entre academia e setores produtivos.
Universidades públicas operam atadas às mesmas imposições administrativas que o governo em áreas como contratação, compras e propriedade intelectual. A progressão na carreira e a percepção de sucesso entre pares se dão via métricas que desestimulam a aplicação concreta do conhecimento produzido.
Uma saída possível envolve um esforço coordenado dos vários atores em torno de um esforço de desburocratização, de incentivos legais e de modernização de universidades e órgãos de controle e fomento da ciência.
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