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Pércio de Souza

Covid-19: a literatura do front

É importante compreender o que ocorre nos países afetados antes de nós

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Pércio de Souza

Engenheiro e fundador do Instituto Estáter

Uma das características da pandemia provocada pelo Sars-CoV-2 é que parte relevante da literatura está sendo escrita agora, pari passu com a sua evolução. As certezas são transitórias, e os modelos são inacurados pela falta de conhecimento do vírus.

Isso faz com que o acompanhamento e a compreensão do que acontece nos países onde a infecção se alastrou primeiro sejam uma ferramenta importante para a interpretação e previsão do que pode acontecer por aqui. Abordo dois aspectos das análises feitas a partir dos dados coletados pelo Instituto Estáter.

O primeiro: a curva de um país continental é a combinação de várias curvas pandêmicas que podem ser muito distintas. A curva americana é um exemplo dessa distorção. Ela mostra até 12 de julho uma mortalidade acumulada de 408 óbitos por milhão de habitantes. Esse número coloca os EUA em sétimo lugar se comparado com países da Europa.

Mas um raio-x nessa curva mostra os “EUA infectados” (estados com mortalidade acima da média americana) em situação muito pior. São 14 estados que representam 29% da população, mas chegam a 72% dos óbitos. Se fossem tratados como um país, ficariam com 963 óbitos por milhão, o que os levaria a superar a mortalidade da Bélgica, que lidera o ranking de óbitos na Europa, com 850 mortos por milhão.

Por outro lado, os até então “EUA poupados” (36 estados, 233 milhões de habitantes, com mortalidade abaixo da média) contabilizam 176 óbitos por milhão, perto de 1/6 da mortalidade do que chamamos de “EUA infectados”.

Aumentando o zoom para os estados, há diferenças mais gritantes quando comparamos os 1.750 óbitos por milhão de Nova Jersey com os 178 da Califórnia ou os 112 do Texas, por exemplo. Portanto, a leitura da curva consolidada pode levar a interpretações equivocadas e esconder a verdadeira extensão e impacto do vírus.

O segundo: não há até hoje indício de uma segunda onda de infecção nos países que estão à nossa frente na pandemia.

Começando pelos EUA, os estados poupados até agora são os responsáveis pelo aumento da infecção recente. Entre eles, Califórnia, Texas, Flórida e Arizona. Até então vencedores na pandemia, enfrentam, desde início de julho, a expansão do vírus. Como exemplo, no ápice da curva americana no meio de abril, os 36 estados poupados (até então) representavam 18% das mortes semanais. Na semana encerrada em 12 de julho, representaram 72% dos óbitos. Por outro lado, os estados infectados mostram desde final de abril uma curva descendente que não foi interrompida nem mesmo com os protestos contra o assassinato de George Floyd na última semana de maio. A aparente volta da infecção americana, na verdade, é a chegada da primeira onda naqueles estados que postergaram a curva de infecção.

Na Europa, os sinais de exaustão da curva pandêmica também parecem estar se consolidando. Os principais países europeus apresentam número de óbitos estável ou cadente, mesmo depois do fim do isolamento. Na semana encerrada 12 de julho, Reino Unido, Espanha, Bélgica, Holanda e Suécia tiveram seus menores índices de óbitos pela Covid-19, enquanto Alemanha, França e Itália apresentaram números estáveis. Com exceção do Reino Unido, que teve 594 óbitos, todos os demais europeus que acompanhamos apresentaram menos que 100 óbitos na semana e menos que 3% dos números que apresentaram no ápice da pandemia.

Esses exemplos demonstram até agora que não há indício de uma segunda onda pandêmica nos países que estão com a infecção avançada. Alguns saltos momentâneos nos testes positivos em algumas regiões têm ocorrido, mas nada além de episódios isolados.

A volta às atividades e o relaxamento do isolamento no Brasil têm sido marcados por inseguranças, polêmicas e surtos de radicalização, como quase todos os debates nesta pandemia. Mas, embora as certezas sejam transitórias, evidências não podem ser desprezadas. A política pública precisa se adaptar aos acontecimentos verificados nos países que estão à nossa frente para implementar as ações no Brasil.

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