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Roberto Smeraldi

Lenda rural

Tese sobre as críticas ambientais ao Brasil reflete uma ignorância provinciana

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Roberto Smeraldi

Jornalista, ex-presidente do comitê de assessoria para o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil e autor do livro “Novo Manual de Negócios Sustentáveis” (Publifolha)

Voltou a lenda urbana: as críticas ao Brasil sobre desmatamento da Amazônia seriam oriundas de interesses comerciais da concorrência estrangeira. Tamanha sandice só reflete uma ignorância provinciana que impede até de dar respostas sensatas à pressão externa.

Há gente para a qual o conceito de “lá fora” representa um complô imaginário que reúne interesses tão distintos —e muitas vezes conflitantes— como aqueles de governos, empresas e opinião pública. Gente que carece de trânsito e até mesmo de conhecimento de idiomas para frequentar os corredores das Nações Unidas, da OMC ou das grandes multinacionais. Sendo que fiz isso por mais de 30 anos, pautando o tema da Amazônia, vou explicar como as coisas funcionam.

O que a Amazônia exporta —e que tem a ver direta ou indiretamente com desmatamento— são três itens: minérios (principalmente) e, em medida menor, soja e carne (ou gado). O interesse comercial de importadores de tais matérias-primas, ou de beneficiadores que agregam valor a elas —como China, Europa, Oriente Médio—, é o de qualquer comprador: ter oferta abundante, alternativas de compra e preços baixos.

O desmatamento contribui para tais interesses, pois externaliza custos —isto é, os retira de sua precificação. E isso vale em cascata também para todos os fenômenos associados tipicamente ao desmatamento, como grilagem de terra, trabalho escravo, informalidade e sonegação. A França, a Holanda ou a China buscariam por acaso substituir suas importações de ferro gusa ou farelo com produtos próprios? Pelo contrário, querem engordar seus porquinhos ou fabricar seus carros com ração ou aço baratos.

O paradoxo é que o Brasil vive essa situação ao revés em outra exportação amazônica, a do dendê. Ali, nosso produto segue padrões ambientais mais avançados e sofre com a concorrência desleal das regiões que produzem com desmatamento no sudeste asiático. Ou seja, em termos de mero interesse comercial, esses produtores-desmatadores atendem o desejo dos importadores.

Quais são então as verdadeiras razões que levam empresas ou governos a reclamar de forma crescente do nosso desmatamento? São duas, também simples de serem compreendidas.

No caso das empresas é o fator reputacional, que afeta o negócio delas por conta das tendências dos consumidores ou clientes. Ter relação ou proximidade com uma atividade percebida como devastadora para a sobrevivência da humanidade destrói valor das marcas. Inclusive de empresas envolvidas apenas em financiar essas cadeias. Isso até leva a reações como o típico “compro do Brasil só se não for da Amazônia”, algo que só piora os impactos na vida real, mas corrobora o fato que o objetivo é ficar longe de um tema tóxico, e não eliminar um suposto competidor. Por isso que o mesmo raciocínio é seguido também aqui no Brasil, por todos os grandes bancos, por boa parte do agronegócio limpo e por muitas grandes empresas com exposição de marca, que acabam de lançar manifesto do mesmo teor.

Já no caso dos governos, as razões são outras, como negociar em condições mais vantajosas suas responsabilidades na emissão de gases estufa nos acordos internacionais. Isso acontece porque a alocação das emissões se dá na fonte, ou seja, as emissões resultantes do desmatamento de um hectare de, digamos, soja, são contabilizadas no país onde foi realizado o desmatamento, e não naquele que comercializou o presunto feito com o porco criado com aquela soja.

Não é difícil de entender. Mas há lendas urbanas que se tornam até rurais, ou mesmo ruralistas.

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