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Fábio Waltenberg, Celia Kerstenetzky e Sandro Pereira Silva

Abono salarial e renda básica

É possível reformar sem piorar a vida de famílias vulneráveis

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Fábio Waltenberg

Professor de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Celia Kerstenetzky

Professora de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Sandro Pereira Silva

Técnico de planejamento e pesquisa no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

O auxílio emergencial vem amenizando a intensidade da crise socioeconômica provocada pela pandemia e deve ser mantido enquanto for necessário. As feições de um programa abrangente e permanente de garantia de renda estão em debate, inclusive na Frente Parlamentar da Renda Básica, que abarca 23 partidos. É louvável ampliar a garantia de renda, e alvissareiro o interesse de todo o espectro político pela matéria. Mas as propostas podem embutir riscos de retrocessos que precisam ser explicitados. Aqui apontamos um deles, envolvendo o abono salarial.

Assegurado pela Constituição de 1988, o abono é de natureza previdenciária, possui vínculo contributivo. É destinado a trabalhadores formais que recebem até 2 salários mínimos (sm) mensais, com ao menos 5 anos de registro no PIS/Pasep. O valor do benefício é proporcional aos meses trabalhados no ano de referência, variando entre R$ 88 e R$ 1.045 anuais, depositados em parcela única.

Para viabilizar um programa de renda básica, algumas propostas recomendam sua extinção, endossada por editorial da Folha. Entendemos que seria um equívoco. A principal razão é não fazer sentido reformar a proteção social para piorar a vida de famílias vulneráveis —alegadamente em benefício dos mais pobres, paradoxalmente poupando os mais ricos.

Extinguir o abono prejudicaria mais de 20 milhões de trabalhadores em condições próximas à pobreza. Uma família de quatro pessoas, que vive da renda de um trabalhador formal no limite superior de elegibilidade do abono, o perderia mesmo dispondo de cerca de R$ 17 por dia para necessidades básicas de cada um de seus membros. Não tem sequer ensino fundamental um quarto dos beneficiários, e menos de 10% frequentaram o ensino superior. Muitos vínculos empregatícios são instáveis: Dois terços estão empregados em serviços e comércio, 40% em empresas pequenas. Recebem valor inferior ao salário mínimo 43% dos beneficiários, pois seus vínculos de emprego duraram menos de um ano. Claramente não são "privilegiados" —usar esse termo é abuso de linguagem. Retirar recursos do abono e transferi-los para quem se encontra abaixo é seguir a tradição elitista brasileira.

O segundo risco é o de perigosa simplificação da política social. Sistemas de bem-estar incluem benefícios diversos, que refletem a heterogeneidade dos riscos sociais: seguro-desemprego e aposentadoria substituem a renda do trabalho; BPC ( Benefício de Prestação Continuada) protege contra pobreza na velhice; Bolsa Família, contra a extrema pobreza, especialmente na infância. O abono oferece alguma proteção contra o risco da pobreza por insuficiência de renda do trabalho. Lá se foi o tempo em que o emprego formal representava segurança econômica; a pobreza no trabalho, tão comum nos primórdios da Revolução Industrial, volta a assombrar.

Muitos países contam com benefícios sociais para desempregados ou excluídos da atividade econômica, mas também para trabalhadores ativos. Nessa perspectiva, o abono é uma política que contribui para manter vínculos com empregos que pagam pouco e diminuir a demanda por assistência social, como o EITC, nos EUA, e outros "in-work benefits" mundo afora. Emprego formal mantido importa para o indivíduo e para a coletividade, inclusive porque as contribuições vinculadas financiam a Previdência Social.

O terceiro risco é criar divisões políticas artificiais entre vulneráveis, pobres e miseráveis, deixando de fora da (in)equação grupos realmente abastados. Recusar benefícios a um cidadão somente porque está inserido no mercado de trabalho formal de baixos salários, além de criar perigos sociais evitáveis, tais como induzi-lo ao desemprego ou à informalidade para acessar uma renda básica, pode fomentar ressentimentos por tratamento injusto, na contramão dos objetivos de integração social solidária, típicos de um desejável estado de bem-estar.

Programa longevo, o abono faz parte da cultura da classe trabalhadora, cujos representantes o defenderam na Assembleia Constituinte. Funciona bem, com baixo custo operacional. Tendo em vista sua eficiência, é mais sensato mantê-lo, aperfeiçoando-o. Poderia figurar como uma das componentes de um amplo programa de “Renda Básica de Cidadania”, para usar o termo cunhado por Eduardo Suplicy.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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