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Estevão Ciavatta

Amazônia, Sociedade Anônima

Floresta deve mostrar a sua cara sem deixar de ser o que foi nos últimos 14 mil anos

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Estevão Ciavatta

Cineasta, empresário e ecologista, é sócio-fundador da Pindorama Filmes; escreveu e dirigiu, entre outros, os premiados 'Brasil Legal' e 'Central da Periferia' (TV Globo)

A Amazônia é uma sociedade anônima. Há apenas 50 anos o Brasil oficial resolveu ocupar esta floresta sem reconhecer que ela já era habitada pelas populações indígenas há, pelo menos, 14 mil anos. E nós, longe de tratarmos a Amazônia como o nosso bem mais precioso, temos, ao contrário, imaginado que é preciso superar a Amazônia, transformá-la em uma outra coisa que ela não é.

A Amazônia é desconhecida da maior parte da população brasileira, ainda que a gente coma a carne, use a eletricidade, vista o algodão, pise na madeira e beba a água vinda de lá. Em termos científicos, das mais de 15 mil de espécies de arvores que existem na Amazônia, conhecemos a biologia de 20 delas. Uma única universidade, a USP, tem mais doutores do que todas as universidades de uma região única no planeta.

O diretor e produtor Estevão Ciavatta - Mathilde Missioneiro - 3.out.20/Folhapress

A Amazônia é enorme, representa 59% do território brasileiro. É a maior bacia hidrográfica do planeta, a maior biomassa florestal do mundo, onde mais de 180 línguas nativas são faladas entre 400 bilhões de árvores. É ainda provedora de água, madeira e minério para a economia do Brasil. É área de expansão do agronegócio. Detém a maior concentração de biodiversidade do planeta com ativos que nem sabemos calcular o valor.

Mas essa riqueza toda continua sendo explorada sem governança e sem planejamento. Nos últimos 50 anos, de cada dez hectares desmatados, apenas um tem a produtividade agropecuária da média brasileira. Seis têm produtividade abaixo. E três hectares não produzem nada. Com os menores índices de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país, aqui vivem pessoas e populações sem direitos reconhecidos, numa terra onde fala mais alto a lei do mais forte: grilagem de terras, violência contra minorias, garimpo sem controle, tráfico de pessoas, armas e drogas, e o comércio majoritariamente ilegal de madeira e carne. Nesse ambiente, onde proliferam instituições anônimas e ilegais, a floresta não vai sobreviver.

Se pretendemos viver a Amazônia do século 21, precisamos primeiro acabar com o desmatamento, já. Ele é o câncer que corrói a teia social da região. Não há duvida de que a regularização fundiária deve ser o primeiro passo para isso, mas ela não pode pretender legalizar o ilegal, premiando a grilagem de terra, o roubo de enormes áreas de terras públicas, um patrimônio do povo brasileiro.

O reconhecimento do direito à terra deve priorizar os pequenos agricultores e a ordenação do território deve ser entendida amplamente com a homologação de terras indígenas e a criação de novas Unidades de Conservação: os 60 milhões de hectares de florestas públicas brasileiras ainda sem destinação, por isso desprotegidas e alvo de grileiros, devem continuar como brasileiras, públicas e florestas!

Na Amazônia 4.0, como bem define o cientista Carlos Nobre, a biodiversidade é nosso principal ativo, uma fonte inesgotável de riquezas para as industrias farmacêuticas, de cosméticos e de alimentos, mas é fundamental a reversão de renda para as populações tradicionais que detém o conhecimento sobre as plantas. Amazônia primeiro para quem vive nela, porque aquele que vive na floresta é o único que pode, de fato, cuidar dela. Seja o Ibama ou o Exército, as instituições de comando e controle nunca terão contingente suficiente para vigiar a enorme floresta.

No meu filme “Amazônia Sociedade Anônima” isso fica bem claro. E manter a floresta em pé é fundamental neste momento, pois ela tem um valor altamente estratégico para o Brasil. Nas negociações internacionais, temos a joia da coroa: o carbono estocado em forma de biomassa florestal será decisivo para as mudanças climáticas do planeta. E ainda tem os serviços ecossistêmicos que a floresta nos fornece graciosamente, cujo principal é a água, um ativo da nossa economia. O PIB do Brasil depende da estabilidade de chuvas que vem da Amazônia. O agronegócio depende da umidade da Amazônia para sua enorme produtividade. As hidroelétricas e os reservatórios de água do Centro-Oeste e Sudeste dependem da água que vem da Amazônia.

A Amazônia deve deixar de ser uma sociedade anônima para mostrar sua cara ao mundo. Sem deixar de ser o que ela foi nos últimos 14 mil anos: um lugar de convivência das diferenças, um ambiente saudável construído a partir de uma intensa interação entre entes humanos e não humanos. A Amazônia pode não ser o pulmão do mundo, mas ela é o coração do Brasil.

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