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Frei Betto

Carta de uma neocristã que fez aborto

Excomungar é colocar outra cruz em nossas costas

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Frei Betto

Escritor e assessor de movimentos sociais, é autor de ‘Diário de quarentena’ (ed. Rocco), entre outros

Estimado frade,

Tenho 21 anos. Em 2009, aos nove, fui submetida a um aborto. Media 1,35 m e pesava 35 kg. Segundo os médicos, caso a gravidez prosseguisse, morreriam eu e o bebê. Agora, caso semelhante ocorreu no Espírito Santo. A menina tem dez anos.

Tanto ela quanto eu fomos estupradas desde os seis. Ela pelo tio; eu, pelo padrasto. Nós duas tivemos uma infância amargada pela pobreza. Eu não tinha pai, ela não tem mãe. E o pai dela se encontra preso.

Frei Betto, frade dominicano, assessor de movimentos sociais e escritor
Frei Betto, frade dominicano, assessor de movimentos sociais e escritor - Greg Salibian - 29.fev.16/Folhapress

Indefesas, fomos obrigadas a nos submeter por medo. Eu sentia ódio daquele homem que me violentava com frequência. Ele prometia castigar-me caso eu revelasse o que fazia. Um dia, passei mal. Não estava preparada para a maternidade. Levada ao hospital, fizeram o aborto.

A Igreja Católica excomungou toda a equipe médica e nossos familiares, tanto no meu caso quanto no da menina capixaba. Em um país como o Brasil, isso significa colocar sobre nossas costas mais uma cruz. Por isso, cresci com raiva da Igreja: ela me abortou.

Bispos, padres e pastores nos execraram sem condenarem a situação que nos levaram a tanto descalabro. Por que não condenam as causas da miséria? Nossas famílias não teriam nos oferecido uma infância sadia se não tivessem sido empurradas para a miséria? Por que não excomungam a quem lamenta a ditadura não ter matado 30 mil? Ou a indiferença de quem poderia evitar a morte de 120 mil pela Covid-19? Por que não condenam quem defende políticas econômicas que aprofundam a desigualdade social, sacrificando a infância de tantas crianças?

Deus, porém, é imprevisível. Há meses Ele entrou na minha vida. Sinto-me amada por Ele. Fui buscar na Bíblia como Jesus teria agido diante de nossos casos. Teria nos apartado da comunhão com seus discípulos?

Por isso, gostaria de sua opinião. Nada sei de teologia, mas o apoio que recebi após aquele sofrimento atroz me permitiu sair da miséria, estudar e desfrutar de uma vida digna.

Narra o capítulo 4 do Evangelho de João que Jesus encontrou uma mulher samaritana no poço de Jacó. Ela teve cinco maridos e, agora, vivia com um sexto homem com quem não era casada. Se Jesus pensasse como esses bispos, padres e pastores que nos achincalharam, ele teria evitado o contato com uma mulher tão promíscua. Teria feito um sermão moralista, abominando tamanha rotatividade conjugal. Teria condenado a samaritana ao quinto dos infernos.

Essa gente jamais teria percebido, como Jesus, que ela trazia no coração um buraco tão profundo que só mesmo Deus seria capaz de caber ali dentro. Foi o que ele fez: não a recriminou e ainda a elogiou por falar a verdade! Foi ela a primeira pessoa a quem ele se revelou como Messias.

Não sei se estou certa em meu modo de pensar. Por isso, escrevo ao senhor. Ainda preciso de misericórdia, no sentido etimológico do termo —de gente capaz de postar seu coração junto à miséria alheia.

Deus o abençoe!

X.

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