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Juca Kfouri

Com atletas contaminados e jogos suspensos, o Brasileirão deveria ser paralisado? SIM

Nada justifica pôr em risco a vida de uma só pessoa pelo futebol

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Juca Kfouri

Jornalista, colunista da Folha e autor de 'Confesso que Perdi'; é formado em ciências sociais pela USP

Não é que o Covidão-20 deva ser paralisado. Nem deveria ter começado.

Simplesmente porque não havia razão alguma para acreditar na capacidade da CBF em estabelecer protocolo minimamente confiável para a realização do campeonato.

O jornalista Juca Kfouri
O jornalista Juca Kfouri - Alice Vergueiro - 8.nov.19/Folhapress

Se o governo federal e seu militarizado Ministério da Saúde são inaptos ao cuidar da pandemia de Covid-19, por que confiar numa entidade reconhecidamente nebulosa e incompetente?

Deixemos as coisas claras.

Ao contrário do acontecido na Europa, onde o futebol recomeçou com a pandemia controlada, aqui voltou sem a curva dar sinais de queda.

Voltou só porque a irresponsabilidade do presidente da República, depois de dizer diversas vezes considerar exagerada a paralisação, pressionou pelo retorno e até concedeu uma medida provisória, a MP do Flamengo, como moeda de troca.

Inegável que a pausa agravou a situação pré-falimentar da maioria dos clubes brasileiros, mas, a exemplo da economia do país, a palavra é esta: agravou, não causou a crise.

Além do mais, pode-se argumentar que a flexibilização ampla, geral e irrestrita das medidas de isolamento social pelo Brasil afora permitiu indagar por que não jogar futebol.

Os cúmplices da necropolítica dizem que o retorno açodado dos jogos ajuda na sensação de normalidade, por mais anormal que seja termos mais de 110 mil mortes.

Explique para uma criança desejosa de jogar bola os motivos pelos quais você não permite a brincadeira. "Mas mamãe, mas papai, mas vovô, o Corinthians está jogando, por que eu não posso?", ela perguntará, repleta de razão.

Examinemos o protocolo da CBF, driblado sucessivamente pelo novo coronavírus com adiamento de partidas, tantos são os jogadores que testaram positivo.

As tais medidas de segurança sequer impediram que o time do Imperatriz, do interior do Maranhão e da Série C, fizesse, de ônibus e avião com escalas, viagem de 1.600 quilômetros até Campina Grande, na Paraíba, com 12 jogadores positivados. E não houve jogo.

Ou que o São Paulo fosse até Goiânia, entrasse em campo e visse a partida adiada porque seu adversário, o Goiás, tinha dez jogadores contaminados, oito deles titulares.

Ou que o treinador do Fluminense, Odair Hellmann, no Maracanã, fosse mandado para casa porque também tinha testado positivo —e comandado treinamentos nessa situação.

Já o gaúcho Ypiranga, de Erechim, viajou 11 horas de ônibus até Brusque, em Santa Catarina, sem saber o resultado dos testes. Ao chegar, soube que seis jogadores estavam com a Covid-19.

Ora, deixemos de brincar com a vida das pessoas, dos atletas e de todos os envolvidos numa disputa de futebol, com delegações voando em aviões de carreira para cima e para baixo.

Nada justifica botar em risco a vida de uma só pessoa por causa de jogos de futebol, rigorosamente não essenciais, por mais apaixonantes que sejam.

Compare com a fase final da Liga dos Campeões da Europa, confinada em Lisboa. Ou com a NBA, na bolha da Disney.

Aqui é uma farra. Os jogadores jogam e vão para casa, transitam por aí normalmente, pois está tudo normalizado diante, afinal, da inevitabilidade da morte. E daí?

Na Argentina, com menos de 7.000 mortos e cerca de 300 mil casos, contra mais de 3 milhões no Brasil, só agora os clubes voltaram —e apenas aos treinos.

O Covidão-20 seguirá impávido colosso. Resta torcer para terminar sem vítima fatal.

Quem será o campeão, ou se classificará para a Libertadores, ou cairá para Série B é o menos importante.

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