Descrição de chapéu
Rita de Cássia Hipólito

Ela não quer guerra com ninguém

Caso de menina de Araçatuba expõe preconceito com religiões de matriz africana

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Rita de Cássia Hipólito

Mestre em sociologia pela USP, é filha de santo do Tumbenci (Salvador)

Nos últimos dias, o candomblé se viu, mais uma vez, alvo de um embate judicial após o Ministério Público de Araçatuba (SP) levar adiante a denúncia de maus-tratos pela raspagem de cabelo de uma adolescente que passava pelo rito de iniciação. A garantia constitucional ao direito e à liberdade religiosa não bastou, e Kate Belintane perdeu a guarda de sua filha.

A história mostra que esse descompasso entre lei e ação judicial não é de hoje. Embora o catolicismo fosse a religião oficial, a Carta Magna de 1824 já acenava para o direito de todos de escolher e praticar livremente sua fé. Não tardou “os batuques” serem reduzidos à categoria de seita e classificados como feitiçaria e curandeirismo, com pena de até 24 anos de prisão, conforme o código penal de 1890.

Nem mesmo o decreto de 1934, do então presidente Getúlio Vargas, extinguindo a proibição aos cultos afro-brasileiros, significou o fim da perseguição aos terreiros que, na Bahia, a partir de 1950, deviam obter licença e ser fichados na “Delegacia de Jogos e Costumes” sob risco de ter seus espaços sagrados invadidos e até mesmo interditados. Jorge Amado mostrou isso em “Tenda dos Milagres”, onde o delegado Pedrito Gordo, numa alusão a Pedro de Azevedo Gordilho, invadia os terreiros destruindo tudo.

É desse período que surge a expressão “chuta que é macumba”. Somente em 1976, no governo de Roberto Santos, que a lei passa a garantir o livre exercício de culto, liberando os candomblés da Bahia de necessidade de registro, pagamento de taxas e licença junto a autoridades policiais.

No caso de Araçatuba, a decisão da Justiça só foi revertida depois que o advogado Hédio Silva Jr. demonstrou a importância de se manter o vínculo entre pais e filhos e reforçou que a adolescente participou do ritual por livre e espontânea vontade. Nem mesmo a lei 9.459, de 1997, que estipula como crime a prática da discriminação e preconceito religioso, teve sua aplicabilidade garantida.

O candomblé tem como pilar a ligação com a natureza e o resgate da ancestralidade africana perdida durante o tráfego negreiro. Para nós, "inkice" (ou orixá), significa entidade, energia, força que existe em toda a natureza, mas que também se mostra através da incorporação. “Kinsa”, raiz da palavra "inkice", também significa cuidar, tratar, proteger. Esse é o princípio do ritual de iniciação em que a pessoa escolhida pelo "inkice" recebe os cuidados de toda a comunidade do terreiro, durante o resgate de sua identidade ancestral.

É um período que pode ser pensado como o nascimento de uma criança que precisará ser educada, aprender a língua-mãe por meio de cânticos e orações e deverá, sobretudo, ser afastada de toda e qualquer preocupação que o mundo externo representa em busca da conexão com sua própria natureza divina. Assim como um bebê que vem ao mundo careca, a raspagem da cabeça, elemento sagrado que merece atenção especial, simboliza esse nascimento. Importante lembrar que, na África, o que aqui reduzimos a uma religião, é todo um conjunto de valores civilizatórios que, após esse ritual, passarão a fazer parte de nossa vida como um todo.

O uso de vestimentas brancas —tão comum em Salvador, principalmente às sextas-feiras (algo que foi descrito pelos policiais ao encontrar a adolescente no terreiro)— é uma homenagem e pedido de proteção a Oxalá, pai de todos os orixás, "inkice" que simboliza a paz. Enfim, parafraseando a música: de cabeça feita, vestida de branco, “ela não quer guerra com ninguém”.

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