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Tonico Pereira

Encontro pandêmico

Um bate-papo com Sócrates à beira da lagoa Rodrigo de Freitas

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Tonico Pereira

Ator

Atravesso a pista correndo e chego à margem da lagoa Rodrigo de Freitas são e salvo. Venci os carros abusados que não teriam remorso se me atropelassem. Mexo os braços e as pernas como se fosse um atleta olímpico pronto para o tiro de largada.

Quando percorro uma distância de 30 metros, paro para tomar uma água de coco —o que não acontecerá, pois vejo um estranho se aproximar.

— Epa, mestre Socrates!!!

Sócrates: — Mestre porra nenhuma!!!

— Filósofo Sócrates?

Sócrates: — Filósofo é o cacete! Isso foi uma injúria criada por Platão que me causa problemas até hoje. Mas, um dia, eu pego ele pela túnica.

— Vou chamá-lo de Sócrates, pode ser?

Sócrates: — Melhor. Por que ousaste interromper a minha caminhada milenar?

— Meu nome é Tonico Pereira. Sou ator.

Sócrates: — Nunca ouvi falar de Tonico Pereira, apresente-se melhor!

— Há alguns anos, eu comemorava os meus 50 anos de carreira e resolvi, com amigos, levar à cena "O Julgamento de Sócrates", escrito por Platão.

Sócrates: — Não me fale desse nome. Esse desgraçado é que me fez conhecido e impossibilitado de dar uma volta na lagoa sem ser importunado por um anônimo qualquer.

— Por que o senhor preferiu a morte no seu julgamento?

Sócrates: — Era cicuta, mas pensei que fosse vinho e virei em um gole só. Senti dor depois de morto. Mais vale uma morte digna do que uma vida indigna. A morte pode ser melhor do que a vida.

— O que faz andando pela lagoa?

Sócrates: — Resolvi dar uma trégua na quarentena. Gosto da paisagem. Por falar nisso, de quem é aquela estátua gigante no alto da montanha?

— É o Cristo Redentor, de braços abertos sobre a Guanabara.

Sócrates: — Nunca ouvi falar! Você tem algum livro ou biografia para me indicar? Ele também teve algum Platão na vida dele?

— Ah... lê o Segundo Testamento.

Socrates: — E por que não o primeiro?

— Vai no Segundo, que lá tem o que você quer! Mas deixa eu te contar. Quando fiz o espetáculo sobre seu julgamento, o contextualizei como se você estivesse comentando o governo Temer... (E Sócrates, indignado, achando que eu tinha errado a pronúncia):

Sócrates: — Você quis dizer o verbo temer? Sua pronúncia é péssima...

— Pois é, pois é... Propuseram-me refazer "O Julgamento de Sócrates", contextualizado no novo governo.

Sócrates: — O que este novo governo tem feito para o povo pobre, para os índios, para a população de rua? E pelos pretos, pelas favelas, pelas florestas, pelos rios e mares?

— Nada, nadica de nada. Aliás, está é fazendo muito mal.

Sócrates: — E você quer contextualizar o meu julgamento se referindo a esse nadica de nada? Tonico... É, Pereira, comece o espetáculo pelo fim e descansarás durante a peça; portanto, morra logo.

— Como assim???

Sócrates:. — Em cena, beba a taça de cicuta e morra o mais rápido possível. Até mais! Vou procurar um ângulo melhor para olhar o Cristo Redentor.

— Se eu morrer no começo do espetáculo, o público vai querer o dinheiro de volta...

Sócrates: — Tudo bem! Se você fosse falar o texto todo, eles não entenderiam nada com essa sua péssima dicção! Melhor morrer!

— Você está sendo mal-educado!

Sócrates: — Não, estou tentando salvá-lo de uma vida medíocre. Vá lá, tome uma dose de cicuta e vá morrer em paz!

— Pensando bem, vou pedir à produção que me arranje uma talagada de cicuta das boas e vou morrer dignamente também. Obrigado, Sócrates!

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