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Paulo A. Nussenzveig e Alicia J. Kowaltowski

O governo paulista pretende golpear a ciência?

Pesquisa não é feita do dia para a noite, os resultados podem demorar anos

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Paulo A. Nussenzveig

Professor do Instituto de Física da USP

Alicia J. Kowaltowski

Professora do Instituto de Química da USP

Em 2017, escrevemos nesta Folha que "os tempos conturbados do nosso país nos ensinaram que é preciso vigiar cuidadosamente os governantes". O governo mudou, mas certas práticas permanecem. Tramita em regime de urgência na Assembleia Legislativa de São Paulo o projeto de lei nº 529, encaminhado em 12 de agosto pelo governador paulista João Doria (PSDB), com "medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas". Deixemos bem claro: somos favoráveis à responsabilidade fiscal.

No meio de 46 páginas e 69 artigos, está o artigo 14, que prevê que "o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial das autarquias, inclusive as de regime especial, e das fundações, será transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual, sem prejuízo do disposto no artigo 76-A do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, para o pagamento de aposentadorias e pensões do Regime Próprio de Previdência Social do Estado".

As universidades estaduais, USP, Unicamp e Unesp, possuem balanço patrimonial, resultado de enorme esforço para equilibrar as finanças nos últimos anos. A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) possui balanço patrimonial desde que foi criada, para permitir o financiamento de projetos de longo prazo, como são, por natureza, os de pesquisa científica. O governo pretende confiscar esses recursos? Causa especial apreensão o texto do projeto de lei: "Fica dispensada a deliberação dos órgãos colegiados das entidades que trata o caput deste artigo, caso existam, relativamente à transferência determinada por este artigo."

O governador João Doria tem afirmado que sua administração "segue a ciência" ao lidar com a pandemia do novo coronavírus. Deve saber, portanto, que ciência não é feita do dia para a noite. A continuidade de investimentos em pesquisa no Estado permitiu dar respostas rápidas à pandemia, como a identificação e sequenciamento do vírus no país, desenvolver respiradores de baixo custo e testes diagnósticos, entre outros. Projetos de pesquisa levam vários anos até apresentar resultados. Adicionalmente, as universidades, onde boa parte da pesquisa científica nacional é realizada, formam as novas gerações de profissionais que qualificam nossa força de trabalho. A formação de pessoal também demanda mais tempo do que um exercício orçamentário.

As universidades estaduais e a Fapesp já cortaram diversas despesas neste ano, pois seus orçamentos foram automaticamente reduzidos com a queda da arrecadação estadual, à qual são atrelados. Confiscar os balanços patrimoniais representará um duro golpe, potencialmente impeditivo à realização de pesquisa científica em nosso estado, justamente num momento em que ela é tão necessária para o enfrentamento da crise de saúde.

Outra consequência nefasta de um confisco súbito e sorrateiro como esse é o estímulo aos maus gestores. Por não poderem contar com previsibilidade de recursos, seria natural evitar compromissos de longo prazo, empobrecendo a execução de políticas públicas. Por temerem perder recursos remanescentes, podem gastar com despesas supérfluas, desnecessárias ou sem urgência.

Enquanto não houver revisão ou esclarecimento sobre esse artigo do projeto de lei, entendemos que o discurso do governador Doria de "guiar-se pela ciência" não corresponde à sua prática. Suas manifestações em defesa da democracia e das instituições também empalidecem diante do avanço autoritário e autocrático sobre a autonomia de gestão das universidades e da Fapesp. Ademais, ele rompe um compromisso de campanha, feito em declaração à senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), de que manteria intactos os recursos da Fapesp.

Nós, cientistas, estamos cansados de falsas promessas.

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