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Youssef Alvarenga Cherem

O Líbano, a França e o Oriente Médio

País árabe está mais uma vez na corda bamba entre ideal utópico e fragmentação social e política

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Youssef Alvarenga Cherem

Professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), é graduado em relações internacionais pela PUC-MG e mestre e doutor em antropologia social pela Unicamp

A explosão no porto de Beirute, no último dia 4 de agosto, exacerbou a crise política e econômica pela qual vem passando o Líbano. As tentativas do governo libanês de esboçar alguma resposta efetiva têm sido vistas como mais um sinal de incompetência e corrupção do governo, realimentando um ciclo de protestos que vem se estendendo há meses.

A negligência criminosa que resultou na explosão é interpretada como evidência trágica da falência do sistema: uma elite política clientelista que distribui benesses a seus apaniguados em detrimento da população. O Estado não consegue prover serviços fundamentais, como luz e saneamento básico, sendo também culpado pela crise econômica e financeira que levou à desvalorização da lira, a moeda local, resultando em uma queda brutal do poder de compra e aumento da pobreza (cerca de 50% da população vive atualmente abaixo da linha de pobreza).

O Líbano conta com um sistema político confessional, em que cada comunidade religiosa tem garantida uma representação proporcional ao seu peso demográfico —embora o último censo oficial tenha sido realizado em 1932. O Estado libanês atual foi criado por um acordo não escrito, segundo o qual os cristãos renunciavam ao apoio ocidental, ao mesmo tempo em que os muçulmanos reconheciam a independência do Líbano, abrindo mão da união com a Síria. Uma neutralidade difícil e testada frequentemente, como nas guerras civis de 1958 (que culminou com intervenção americana) e de 1975-1990 (que implantou a hegemonia da Síria, cujas tropas só deixaram o país em 2005).

O sistema político pós-guerra civil presenciou a ascensão dos xiitas, anteriormente marginalizados política e economicamente, e cujo grupo mais influente é o Hezbollah ("Partido de Deus") –aliado da Síria e apoiado pelo Irã, é ao mesmo tempo partido político, provedor de serviços (educação, serviços médicos etc.), milícia armada e organização terrorista.

Apesar da insatisfação generalizada, uma reforma ou transformação do sistema político não é tarefa simples. Além disso, não existe uma oposição política organizada capaz de empreender reformas constitucionais profundas e de resultados incertos.

É nesse contexto que a visita do presidente francês Emmanuel Macron se insere como um possível catalisador de ruptura. Macron, mesmo tendo aventado a criação de um ainda vago “novo pacto político”, recusou interferência francesa direta no processo e reiterou que toda mudança deveria ser efetuada pela sociedade libanesa.

Os laços com a França estendem-se muito além do período do mandato: aliada tradicional dos cristãos do Oriente Médio e especialmente dos católicos (maronitas, melquitas e outros), foi o país europeu que liderou a intervenção humanitária após a guerra civil entre drusos e cristãos, em 1860. O papel da França se faz sentir sobretudo na área cultural, em escolas e universidades de língua francesa. No século 20, seus laços se estreitaram também com outras comunidades, como os sunitas e os xiitas. O líder druso Kamal Jumblat, assim como vários ministros e presidentes, teve educação francesa.

O próprio discurso de Macron, assim como as manifestações a favor da mudança política, demonstram mais uma vez o caráter paradoxal da política libanesa: para alcançar seus objetivos políticos do momento (seja a independência, seja mudanças estruturais ou reforma política), é necessário recorrer a alianças com agentes externos.

Já foi argumentado que o propósito da França seria resgatar o Líbano, atualmente sob influência síria e iraniana, à órbita de influência ocidental. O Líbano encontra-se, então, mais uma vez, andando na corda bamba, frente à escolha entre um ideal utópico de neutralidade e pluralismo cultural e político e a fragmentação social e política que gerou e sustentou a guerra civil e que fomenta a instabilidade crônica do país. Nas palavras do pensador libanês Michel Chiha: “Nós vivemos, e somos condenados a viver perigosamente”.

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