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Clarissa De Franco

Revolução sexual e a orgia das ruas

Festa de quem está cansado da máscara não é transgressão, é birra infantil

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Clarissa De Franco

Psicóloga, é doutora em ciências das religiões com pós-doutorado em estudos de gênero e em ciências humanas e sociais

Em meio à assepsia dos corpos, ao distanciamento, às medições, lavações e excomungações virais, o sexo ficou chato. Há alguns meses, a Prefeitura de Nova York lançou uma cartilha com orientações sobre como fazer sexo seguro durante a pandemia. Além de indicar uma série de medidas de higiene associadas ao ato e aos brinquedos sexuais, a cartilha orienta a manter relações sexuais com pessoas de seu círculo íntimo.

Parece que está acabando, mas ainda é meio clandestino sair para viver o prazer, enquanto as mortes diárias seguem nos três dígitos. A compra de itens de sex shops aumentou consideravelmente nos meses reclusos; no entanto, não é exatamente de diversão que estamos falando. Embora muitas pessoas estejam utilizando a falta de opções para aprender sobre o prazer e a manipulação do próprio corpo, há que se considerar que o cenário é ainda de restrições. Afinal, como manter a libido diante de tantos pré-requisitos? Vamos pedir exame de Covid-19 antes dos encontros sexuais, como outrora fizemos discriminatoriamente com o HIV­? Ou devemos ignorar as recomendações e os riscos e viver o prazer do jeito que vier?

Sexo é fortemente ligado a transgressões na história dos indivíduos e da coletividade. Wilhelm Reich associou as orgias sexuais a movimentos que combatem a repressão moral. Para ele, as neuroses sexuais seriam frutos dos Estados autoritários e sua repressão à sexualidade a partir do conservadorismo. Declarou, criativamente, que as verdadeiras orgias sexuais estão nas ruas. Assim, movimentos de massa, como o Black Lives Matter, que ganhou a cena em diversos países no meio da pandemia, seriam a expressão de um gozo coletivo denunciando a opressão do Estado e de suas instituições repressoras como a polícia.

No entanto, nessa energia de revolução libidinal, há quem confunda a repressão do Estado com as restrições impostas pela pandemia e identifique erroneamente enfrentamento político com afrouxamento das regras de distanciamento social. As festas clandestinas, de estilo “dane-se o corona”, são uma amostra dessa confusão libidinal, conceitual e atitudinal... Uma ejaculação fora do buraco. A sedução de dar uma escapada em um momento de tantas limitações de contato é óbvia. Mas talvez não estejamos escolhendo com clareza nossos adversários.

Há um adoecimento mais profundo e estrutural que se instalou em nossa coletividade para além do coronavírus: trata-se do autoritarismo estéril e moralismo infantil refletidos nas políticas de um Estado que arrota assepsia, sendo contrário os debates de gênero e sexualidade, defendendo construtos falaciosos como os “cidadãos de bem”, a “família tradicional”, os meninos que deveriam vestir azul e as princesinhas de rosa, e que oferecem argumentos para quem chama de assassina uma criança que teve sua infância assassinada por anos de violências e abusos sexuais.

Transgressão, sim. Mas, festa de gente de bem, cansada de usar máscara, não é transgressão. É só criança fazendo birra. A revolução sexual que vale os riscos no momento é colocar a libido para esguichar na cara dessa gente hipócrita e asséptico-moralista que faz murchar qualquer pulsão legítima.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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